"Mataram Marielle" e o que entendemos como Justiça, Estado e Democracia | Resenha

by - agosto 13, 2023


    Quando terminei "O plano Flordelis", de Vera Araújo, senti uma leve ressaca literária. Não consegui engatar um romance que tinha comprado recentemente, de uma autora colombiana que estava há tempos querendo conhecer. Então, decidi me manter na literatura jornalística e engatei "Mataram Marielle", que Vera escreveu em co-autoria com o jornalista Chico Otávio. A leitura é tão fluída e a narração é tão bem cuidada que mesmo sendo uma história com muitos personagens, muitas idas e vindas, muitos becos sem saída e novas pistas - falsas e verdadeiras - aparecendo ao mesmo tempo, terminei a leitura em três dias.

     Vera e Chico começam o livro contando quem era Marielle, seus últimos passos no dia do crime e os detalhes da execução da vereadora. É uma narrativa emocionante, e ao mesmo tempo prática. Os autores conseguem tocar o leitor, sem perder de vista os fatos, colocados sempre de maneira lógica e fácil de entender.

    O segundo passo é mostrar o que acontecia dentro do cenário político carioca naquele ano, inclusive dentro do partido de Marielle, o Psol. A vereadora estaria ao lado de Tarcisio Motta como canditada a vice-governadora do Rio de Janeiro, e o xadrez para tal indicação estava desgastando Marielle e seu gabinete nos últimos dias. Aqui também são apresentados alguns desdobramentos políticos decorrentes da operação Cadeia Velha, que acabou desmontando o PMDB no Rio e levou três políticos influentes e poderosos à prisão. Marcelo Freixo, mentor de Marielle, havia ajudado na operação e existia a possibilidade do assassinato de Marielle ter sido uma forma de atingir Freixo.

    O livro segue mostrando o início da investigação e suas falhas grotescas. Uma dessas falhas foi apontada publicamente: uma jornalista descobriu testemunhas oculares que a polícia nem tinha chegado a conhecer. Seguindo ainda na investigação, o livro aponta o famoso depoimento de "Ferreirinha" apontando Orlando "Curicica" e o também Marcello Siciliano como mandantes do crime. É a partir de Orlando que a polícia vai descobrir sobre o Escritório do Crime, de Adriano da Nobrega.

    Aqui o leitor já começa a perceber como a ainvestigação do caso Marielle vai descortinar o submundo da pistolagem, das milícias e da contravenção no Rio. Adriano da Nobrega e outros matadores de aluguel, muitos deles também milicianos e envolvidos com várias outras stividades criminosas, começam a depor nas investigações e nomes como "Mad" e Ronnie Lessa, surgem aqui e ali. 

    Nesse ponto, ainda na primeira fase das investigações, vemos como a politicagem, típica nos corredores do legislativo e judiciário no RJ, interfere diretamente nas investigações policiais, tirando a autonomia de muitos órgãos da polícia e da justiça.

    O surgimento de Ronnie Lessa como suspeito, bem como todos os passos da investigação que levaram a sua prisão, junto com a do compadre e amigo Élcio Queiroz, são trazidos no livro didaticamente, mostrando para o leitor como a investigação foi conduzida e como se chegou a nomes como Domingos Brazão e Cristiano Girão, que o tempo todo aparecem em volta do caso.

 

    O livro termina com o fim da primeira fase da investigação que descobriu os autores dos disparos contra a vereadora, chegou a prisão do novo chefe do Escritório do Crime, "Mad", que ficou no lugar de Adriano da Nóbrega, e trouxe o submundo da pistolagem no RJ para as primeiras páginas dos jornais.

    No epílogo "Marielle Presente", os autores mostram uma Marielle viva nos ideais e lutas de outras mulheres negras e periféricas que, inspiradas por ela, seguem em busca de posicionamento e respeito na política nacional.

    "Mataram Marielle" mostra como nosso entendimento do funcionamento da Justiça é limitado, para não dizer ilusório. Como cidadãos leigos nos meandros do judiciário, sabemos quase nada sobre como funcionam nossas leis e que tipo de crimes decorrem das brechas que elas deixam. Nossa ideia de Estado, enquanto instituição que assegura a segurança e o mínimo de dignidade aos cidadãos, também parece frágil ao fim da leitura do livro. Temos uma ideia quase fantástica sobre como se articulam as instituições de poder que moldam nossa democracia. Democracia, aliás, é um dos termos sobre o qual o leitor reflete o tempo todo ao longo da leitura. O que é, de fato, democracia? É possível acreditar nesse arauto da liberdade dentro de uma sociedade movida pelo dinheiro e, portanto, pela ganância? Por outro lado, desacreditar das instituições que sustentam a democracia, mesmo que falhas e corruptas, é a melhor forma de enfrentar o problema ou apenas uma maneira de facilitar a impunidade? Muitas perguntas surgem a partir da leitura do livro. E muitas respostas para perguntas anteriores, também
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    O que vemos nas últimas semanas na mídia como desdobramentos da delação premiada de Elcio Queiroz fica mais claro após a leitura de "Mataram Marielle". Entender que muito do que ele disse já era conhecido da justiça e que o que se espera que ele diga sobre o mandante do crime só serve para corroborar ou não suspeitas já existentes, é muito interessante para compreender a importância do caso Marielle como transformador das estruturas de um estado assolado pela corrupção e pelo poder paralelo.

    Marielle mudou a forma como vemos, entendemos e fazemos justiça e política no Brasil. E é lamentável que ela tenha que ter morrido de forma tão brutal para que isso acontecesse. O caso Marielle descortina o que realmente acontece no Rio de Janeiro e que, a partir da eleição de 2018, se espalha como rastilho de pólvora por todo Brasil.

    "Mataram Marielle" é uma leitura indispensável para quem quer entender o cenário histórico atual do Brasil. A melhor parte é que é uma leitura extremamente simples.

Obs.: para complementar o livro, recomendo muito os podcasts "República das Milícias" (que também é livro), "Pistoleiros" e "À mão armada", todos impecáveis em denunciar as profundezas desse universo grotesco de armas, pitoleiros e crimes no RJ.

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