"O Plano Flordelis" e nossa necessidade de acreditar em falsos heróis | Resenha

by - agosto 07, 2023

     


    A essa altura, em agosto de 2023, todo mundo já conhece a pastora e ex-deputada federal Flordelis. Alguns já conheciam sua história, que ficou famosa em meados dos anos 1990. Outros só a conheceram pelos noticiários criminais, em 2019, quando foi apontada como mandante do assassinato do marido, o pastor Anderson do Carmo, nagaragem da casa que os dois dividiam com "55 filhos", em Pendotiba, em Niterói. O livro "O plano Flordelis: bíblia, filhos e sangue", da jornalista premiada Vera Araújo, conta a história de alguns dos muitos personagens dessa trama intrincada, que envolveu fama, dinheiro, política e poder.

    Quero começar esta resenha falando da autora do livro. Vera araújo é repórter investigativa e advogada, e em 2005 revelou a existência de grupos paramilitares em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Esses grupos, segundo apurou Vera, extorquiam dinheiro de moradores e eram formados, principalmente, por funcionários públicos das forças de segurança: polícia militar, civil, e corpo de bombeiros. Foi na reportagem de Vera que tais grupos foram chamados, pela primeira vez, de milícias. Este e outros trabalhos renderiam a ela vários prêmios importantes do jornalismo nacional. Vera também foi co-autora, junto do jornalista Chico Otávio, do livro "Mataram Marielle", que apura o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, e que vai ter resenha por aqui logo, logo. Pela experiência de Vera, podemos esperar que a história em torno do assssinato do pastor Anderson seja uma história concisa, coesa, e sem apelos sensacionalistas. E é exatemente isso que o livro entrega.

    Vera começa contando a história de vida de Flordelis, sua origem humilde na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, e sua forte ligação com a religião. Carmozina, a mãe de Flordelis, frequentava uma ds igrejas da Assembléia de Deus e tinha o sonho de montar sua própria igreja, onde queria ser pastora. Carmozina começou montando um grupo de oração na sala de sua casa simples, na favela, onde atendia fiéis da Assembçléia de Deus, sem que, no entanto, seu grupo tivesse ligação administrativa com a igreja. Ali, Flordelis começou a se destacar fazendo previsões místicas que se concretizam e pregações que emocionavam os participantes dos cultos. Ela e um dos irmãos também tinham herdado do pai o dom da música, e quando entoava canções, a jovem Flordelis encantava a todos. Sua fama correu o morro e cad dia mais e mais pessoas ligadas a religião apareciam no grupo de orações de Carmozina.

Flordeli na infância, com o pai, Francisco.

    Uma das previsões mais famosas de Flor, como era chamada pela família, havia profetizado a morte do próprio pai e de muitas outras pessoas. Em outubro de 1976, a família tinha um grupo musical evangélico chamado "Angelical". Composto pela prórpia Flordelis, seus irmãos e seu pai, o grupo já fazia certo sucesso entre as igrejas e no dia 24 daquele mês, se apresentaria em Guarulhos, grande São Paulo. Para as viagens de apresentação musical, o transporte era feito por uma Kombi e, no meio do trajeto entre São Paulo e Rio, o automóvel capotou com toda a equipe. Milagrosamente, ninguém se feriu gravemente. Mas o pior estava por vir. A polícia já estava no local e uma ambulância cuidadva de Fábio, então com 13 anos, irmão caçula de Flordelis que era musico e aocmpanhava o pai com o grupo musical. Quando os outros integrantes do veículo empurravam a Kombi para o acostamento, uma carreta desgovernada os atingiu em cheio. Nove pessoas morreram, entre eles o pai de Flordelis. Apenas Fábio sobreviveu ao acidente. Anos depois, ele comporia a música "Multidão", que seria gravada pela irmã: seu primeiro sucesso como cantora. A previsão do acidente selou o destino de Flordelis como profetiza do Jacarezinho, e ela passou a ser parada nas ruas por pessoas em busca de "revelações" e conselhos da menina.

    Em 1980, por volta dos 18 ou 19 anos, Flordelis se casou com seu primeiro marido. Dessa união ela teria três filhos: Simone, Flávio e Adriano. A união não durou onze anos. Em sua autobiografia, Flordelis disse que o casamento começou a enfrentar crises, mas um de seus filhos afetivos conta que ela havia traído o marido com um rapaz muitos anos mais jovem, pelo que o marido não a perdoou. Seja qual for a verdade sobre a separação do casal, fato é que Flordelis e os três filhos passaram a viver com a mãe dela, Carmozina. Nessa época, Carmozina já conseguira realizar o seu sonho. Com a ajuda dos filhos e de fiéis, ela conseguiu um imóvel com sessenta cadeiras e ali montou sua Assembléia de Deus, sem nenhuma documentação formal. Nessa mesma época, Flordelis começou a receber crianças na casa da mãe, em uma espécie de creche informal.

    Como boa parte das família do Jacarezinho era mantida por mulheres (o abandono pelos maridos sempre foi corriqueiro), um dos desafios era cuidar para que os adolescentes não abandonassem os estudos e fossem aliciados pelo tráfico de drogas, que dominava a região. As mães encomendavam orações a Carmozina e Flordelis, que, percebendo a dificuldade das mães em arranjar um lugar para deixar os filhos enquanto trabalhavam, improvisaram uma creche em casa, em troca de roupas, alimentos e algum dinheiro para se manterem. Como a creche de mãe e filha era associada ao templo da Assembleia de Deus fundado pelas duas, elas ganharam o status de benfeitoras entre os fiéis, o que aumentou a notoriedade tanto de Carmozina e Flordelis, quanto de seu templo. Foi assom que Flordelis teve a ideia de começar o que ela chamaria de "evangelismo da madrugada".

Flordelis, em 2009, época do lançamento de seu filme biográfico.

    Percebendo o desespero das famílias que perdiam seus filhos para o tráfico, Flordelis passou a pregar sobre a necessidade de proteger os adolescentes, e tomou para si a missão de resgatá-los das mãos dos bandidos. Acompanhada por um grupo de jovens de sua igreja, ela saía pela favela, sempre após a meia-noite, para distribuir panfletos com versículos bíblicos. Apesar de já ter mais de 30 anos, Flordelis parecia muito mais jovem, o que a fazia ser bem recebida entre os adolescentes, e ela decidiu começar a recebê-los em sua casa, a fim de aconselhar os que buscavam a palavra de Deus. No começo dos anos 1990, a casa de Flordelis e Carmozina era um ponto de encontro de adolescentes que, muitas vezes sem tem para onde ir, acabavam ficando por lá indefinidamente. Foi nesse ambiente que Flordelis começou a "adotar" crianças e adolescentes, o que a levaria a ser conhecida como a "mãe de 55 filhos".

    Nessa época, chegou a sua casa Anderson do Carmo, um adolescente que começou a namorar a filha biológica de Flordelis, Simone. Ao mesmo tempo em que Anderson começava a frequentar a casa, também outros adolescentes se juntavam a Flordelis. Dessa época surgiria o núcleo original de filhos de criação da pastora. Muita coisa aconceteu com a família, mas para resumir a história, Flordelis firmou relacionamento com Anderson, agora ex-namorado da filha Sinome. Com ele, a missionária passou a receber e procurar por crianças em condição de vulnerabilidade social para "adotar", entre muitas aspas. Alguns anos depois, Flordelis ficaria famosa entre empresários e celebridades, que passaram a ajudá-la financeiramente e a dar notoriedade a sua história de caridade. Aí surgiu a lenda da "mãe de 55 filhos."

Flordelis e Andreson, por volta de 2017/2018.

    A verdade é que Flordelis não tinha nenhum tipo de documentação legal para as crianças e adolescentes que viviam com ela, e quando surgiu na mídia, acabou sendo alvo do antigo Juizado de Menores (que depois se tornou Vara da Infância, da Juventude e do Idoso), cujo juíz responsável passou a exigir a regularização das tais "adoções". Depois de fugir da justiça por algum tempo. Sim, literalmente, fugir: Flordelis e Anderson, então com 18 anos, fugiram da casa no Jacarezinho durante a noite, para evitar que as crianças fossem tiradas deles. Em sua autobiografia, a pastora afirma que eles chegaram a passar fome e dormir na rua, mas que com a ajuda de empresários renomados do Rio de Janeiro, conseguiram alugar uma casa e garantir condições básicas para as crianças. Assim, o juíz responsável por seu caso começou a regularizar a documentação de algumas crianças e os empresários que ajudavam Flordelis, orientaram que ela transformasse sua "família" em uma instituição de caridade, um abrigo para menores. Foi como surgiu o "Lar Flordelis." Porém, a instituição não duraria muito e logo Flordelis e Anderson, então seu marido, decidiram voltar a ser família, com diversas adoções sendo feitas ao longo dos anos.

    Com o sucesso que a história da esposa fez na mídia, Anderson passou a arquitetar uma estratégia para alçar a carreira de cantora e pastora de Flordelis. Com a ambiciosa visão de negócios do marido e o talento para o canto e para as pregações da esposa, a família construiu um verdadeiro império. O Ministério Flordelis, igreja fundada pelo casal, arregimentava cada dia mais e mais fiéis, e o sucesso como cantora gospel levaria o nome de Flordelis a fama internacional. Foi nesse ponto que Anderson começou a organizar o próximo passo: lançar a esposa na carreira política.

    Como a chamada "bancada da Bíblia" crescia a cada dia nas câmaras estaduais e na federal, bem como no senado, a ajuda de pastores de grandes igrejas em campanhas eleitorais se tornou uma valiosa moeda de troca para os comandantes das grandes igrejas. Com um séquito numeroso de fiéis, não demorou para Anderson conseguir que importantes lideranças no meio gospel apadrinhassem a candidatura da esposa. Assim, em 2018, Flordelis se tornaria deputada federal. Foi aí que a aparente família feliz da "mãe de 55 filhos" começou a ruir.

Flordelis pregando em seu templo "Cidade do Fogo"

    Já é história mais que conhecida que em 16 de junho de 2019, o pastor Anderson do Carmo seria assassinado, em resultado de uma trama que envolvia a própria esposa como mandante e os próprios "filhos" como cúmplices e assassinos. Essa parte da história, vou deixar que vocês conheçam no livro de Vera Araújo. E já adianto que a parte que eu contei aqui, foi muito resumida. Vera conta detalhes do emaranhado de adoções legais e ilegais, da dinâmica da família super numerosa e de como Flordelis se tornou primeiro "mãe de 55 filhos", depois pastora e cantora famosa, até chegar a deputada federal e mandante do assassinato do próprio marido. Vera ainda traz o relato minucioso da investigação que se seguiu à morte do pastor, bem como seus desdobramentos na justiça. Tudo em uma linguagem simples, direta, e dentro do que se sabe ser verdade sobre o caso, sem invencionices sensacionalistas que tiram o foco do que realmente importa: fazer justiça a Anderson do Carmo.

    Para finalizar essa resenha, quero dar minha opinião pessoal sobre este episódio emblemático. Lendo o livro "O plano Flordelis" e estudando o caso com mais calma através de reportagens de vários veículos de comunicação, tem uma coisa que nunca me saía da cabeça: como Flordelis conseguiu adotar tantas crianças e só ter sido alvo da justiça uma vez? Como o sistema judiciário brasileiro permitiu que uma mulher, um casal, que seja, conseguisse a proeza de ter sob sua guarda tantos vulneráveis sem ser uma instituição regularizada, com CNPJ e visitas periódicas de assistentes sociais para garantir o bem estar dos menores? Isso é tão descabido para mim que chega a me tirar o sono. Me parece muito estranho que mesmo após ter a chance de se tornar um abrigo, Flordelis tenha decidido voltar a ser entre muitas aspas uma "família". Aos meus olhos, isso foi uma jogada para não ser importunada por fiscalizações da Vara da infância e poder usar as crianças como plataforma para se apresentar como "heroína caridosa". Adoção não é caridade, é via de parentalidade. Não se adota uma criança para "salvá-la", mas sim, para se tornar pai e mãe. Mais uma vez, vou repetir: adoção não é caridade. Essa ideia é uma visão torta de quem vê crianças em condição de vulnerabilidade como "problemas" ou como "perdidos". O termo "filho de criação" deixa bem claro essa aberração que se tornou abrigar crianças desvalidas, muitas vezes com intenções de fazê-las de meras empregadas, e chamar isso de adoção. "Filho de criação" distingue filhos adotados de filhos biológicos, como se pais adotivos fizessem o favor de criar aquela criança. Filho é filho, ponto final. Não importa - ou pelo menos nçao deveria importar -, se é biológico, adotado ou afetivo.

    Muitas crianças adotadas por Flordelis saíram da casa dela assim que tiveram a chance, outras permaneceram sem poder se desenvolver como adultos por conta da manipulação que sofriam por parte da "mãe", que exigia obediência cega e gratidão infinta por sua "benevolência", entre muitas aspas. Onde estava o Estado para essas crianças? Onde nós, como sociedade, estávamos para essas crianças? Flordelis manipulou um de seus filhos adotivos para assumir o assassinato do marido e livrar um de seus filhos biológicos, que realmente teria atirado no pastor, da cadeia. Onde que isso é ser mãe, de fato, do filho adotivo? Eu percebo que figuras como Flordelis se tornam famosas e, muitas vezes, poderosas por que nós, enquanto sociedade, temos a necessidade de eleger e acreditar em heróis e heroínas. A história da trama para o assassinato de Anderson do Carmo prova que não existem heróis, somos todos humanos, com falhas e, principalmente, interesses próprios. Em um mundo tão indivilualista e ganacioso, Flordelis prova que é melhor sempre desconfiar de excesso de altruísmo e caridade. Como diria minha avó: de boa intenção, o inferno tá cheio.

    Recomendo muito o livro de Vera Araújo, "O plano Flordelis", e deixo aqui o link para compra:    https://x.gd/e67NF



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