Nísia Floresta | As Escritoras (T01E02)

by - setembro 20, 2023

 


O segundo episódio do quadro "As escritoras" é sobre Nísia Floresta, escritora, poetisa e educadora brasileira. Nísia foi a primeira mulher a publicar um livro no Brasil, em 1832, além de defensora de ideias abolicionistas, republicanas e principalmente feministas, posicionamentos inovadores na época. Ela também influenciou a prática educacional brasileira, rompendo limites do lugar social destinado à mulher, usando a prática literária para reivindicar o direito das mulheres à educação.

A vida de Nísia Floresta

Dionísia Gonçalves Pinto (nome real de Nísia Floresta Brasileira Augusta, ou apenas Nísia Floresta), nasceu no dia 12 de outubro de 1810, em uma fazenda no município de Papari - que hoje se chama Nísia Floresta - no Rio Grande do Norte. Filha de um advogado português que chegou ao Brasil no começo do século XIX e da herdeira de uma das principais famílias da região, Nisia cresceu em um grande pedaço de terra, que a família chamava de Floresta, e estima-se que ocupa o que hoje são duas cidades. Durante a infância e adolescência, viveu períodos de acentuada efervescência social, que moldaram sua formação de muitas maneiras.

Em 1817, quando eclodiu a Revolução Pernambucana, o sentimento antilusitanista cresceu muito na região nordeste, o que forçava a família a se mudar, devido ao fato do pai ser de origem portuguesa e também advogado. No exercício de seu ofício, o pai de Nísia assumia causas que, por vezes, iam contra os interesses de proprietários de terras e fazendeiros locais, o que comprometia suas boas relações na região. A família viveu em várias cidades de Pernanbuco, como Goiana, Recife e Olinda, o que permitiu que Nisia tivesse contato com diversas culturas e realidades. Foi em Goiana, uma cidade um pouco maior e mais desenvolvida que Papari, que Nisia iniciou os estudos no convento das carmelitas. Além do estudo clássico manual e de canto, que era dedicado às meninas, a ifluência do pai determinou um primeiro contato com a cultura europeia e também com o liberalismo. O pai a incentivava a ler e articular seus penasmentos através da escrita.

Segundo a tradição da época, meninas entre doze e catorze anos já estariam prontas para o casamento. Assim, com treze anos, Nisia é forçada a se casar com Manuel Alexandre Seabra de Melo, proprietário de terras da região. A união dura pouco, e rompendo com o marido, Nisia volta para a casa dos pais, algo que também era incomum para a época, pois os pais costumavam abandonar filhas separadas do marido. Apesar da compreensão dos pais, ela passa a ser socialmente julgada pela atitude transgressora.

Em 1928, seu pai é assassinado em Olinda, para onde a família tinha se mudado, ainda fugindo dos movimentos separatistas. O pai de Nisia estava atuando em uma causa contra a família Cavalcanti, elite econômica e política da cidade, e acabou morto. No mesmo ano, Nísia inicia um relacionamento com Manuel Augusto de Faria Rocha, um acadêmico da Faculdade de Direito de Olinda. Mesmo sendo acusada de adultério pelo ex-marido, e sofrendo ameaças dele, Nisia passa a viver com o novo marido e tem dois filhos com ele. A primeira filha, Livia Augusta de Faria Rocha nasce em 1830, e o segundo filho vem no ano seguinte, mas acaba falencendo precocemente pouco tempo depois.

Em 1932, a família se muda para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. No ano seguinte, Manuel Augusto vem a falecer, deixando Nísia viúva aos 23 anos. Ela passa a ser a chefe da família, composta pela filha, a mãe e duas irmãs. É nesse contexto que Nísia lecionou e administrou uma escola gaúcha entre 1834 e 1837, pouco antes da Revolução Farroupilha, que faria a família se mudar mais um vez, agora para o Rio de Janeiro, que era capital do Império. Ali, ela funda o "Collegio Augusto" para meninas, com um curriculo pedagógico considerado ousado.

A obra de Nisia Floresta

Em 1831, Nísia publica uma série de artigos sobre a condição feminina em um jornal pernambucano, chamado "Espelho das brasileiras". Os textos a colocam na condição de mulhere pioneira na contribuição para jornais. Em 1832, quando Nisia tinha apenas 22 anos, ela publica seu primeiro livro - o primeiro publicado por uma mulher no Brasil -, chamado "Direito das mulheres e injustiça dos homens", usando pela primeira vez o pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira Augusta. Mais tarde ela explicaria a escolha do nome. Floresta era uma referência ao nome da fazenda onde nasceu, Brasileira pelo orgulho que sentia de seu país e Augusta como homenagem e recordação do seu segundo companheiro e grande amor, Manuel Augusto.

Segundo o autor Laurence Hallewell, em sua obra "O livro do Brasil: sua história", a publicação do livro de Nisia, que primeiramente ocorreu apenas em Recife, teria sido "a mais interessante desse período." No ano seguinte, o livro seria publicado em Porto Alegre e, em 1839, no Rio de Janeiro. O primeiro livro publicado por uma mulher no Brasil também é envolto de um pequeno mistério. Por muito tempo era dado como certo que a obra fosse uma adaptação do livro "A vindication of the Rights of Woman", de Mary Wollstonecraft, ninguém menos que a mãe de Mary Shelley (spoiler: vamos ter episódios com as duas Marys por aqui). A própria Nisia disse que havia se inspirado na obra de Wollstonecraft, mas estudos recentes demonstram que "Direito das mulheres e injustiça dos homens" é, na verdade, uma tradução integral de "La femme n'est pas inferieure a l'homme", ou "As mulheres não são inferiores aos homens", de 1750, de uma escritora francesa que só se identifica como Sophia. A identidade de Sophia tem sido um grande mistério.

A obra de Nisia ficou associada a de Wollstonecraft no ideário feminista, ainda tímido, da época, e é fato que a publicação a fez ganhar o título de pioneira no movimento feminista brasileiro, denunciando o estado de inferioriddade no qual viviam as mulheres e rompendo preconceitos. Sua colaboração em jornais de Recife também foi intensa, com contos, poesias, novelas e ensaios que posteriormente foram publicados no Rio de Janeiro.

Em 1841, seu segundo livro é publicado, "Conselhos à minha filha", um presente de aniversário para Lívia, que completava doze anos. A partir de 1847, suas obras se voltam para a educação, especificamente para a luta da educação igual para meninos e meninas. Em "Fany ou O modelo das donzelas", essa temática fica bastante evidente. Se você se interessou por estes dois livros de Nísia, vai ficar feliz em saber que eles estão disponível em formato de e-book na Amazon por uma pechincha. Deixei o link para compra no fim do texto!

Em passagem pela Europa, Nísia publica alguns relatos de viagem, porém tais obras se perderam ao longo do tempo, talvez devido ao uso de pseudônimos. Foram encontrados artigos da autora assinados como "Quotidiana Fidedigna" em jornais como "O recompilador federal" e "O campeão da legalidade". Em 1853, o jornal "Diário do Rio de Janeiro", importante publicação da época, publicou uma série de artigos de Nisia intitulados "Opúsculo humanitário", onde ela defendia ferrenhamente a educação voltada às mulheres. O mesmo conteúdo foi publicado depois no jornal "O liberal", outro importante veículo de grande circulação. Este material está disponível na Biblioteca Nacional e você encontra com muita paciência e alguma pesquisa.

Em diversos textos, Nísia fala sobre sua infância, seu grande amor e companheiro, Manuel Augusto, e seus familiares, tornando pública a esfera privada de sua vida. Os relatos de viagem que se perderam também tratam de sua rotina pessoal, e entre eles está uma viagem à Alemanha e três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia. O primeiro foi publicado em 1857 em Paris, em francês. O segundo teve dois grandes volumes publicados em 1864 e 1872, também na França. Tais obras foram traduzidas para o português apenas entre 1980 e 2000.

Educação e feminismo

Em 1838, já no Rio de Janeiro, Nísia funda o "Collegio Augusto". A escola era direcionada para meninas e mesclava matérias do ensino tradicional feminino, voltado para a preparação para o casamento, com conhecimentos de ciências, línguas, história, religião, geografia, educação física, artes e literatura. A inovação do colégio de Nísia estava na proposta pedagógica que pretendia oferecer educação às mulheres equiparada aos melhores colégios masculinos da época. O colégio Pedro II, por exemplo, fundado pouco antes do Collégio Augusto, era um dos mais bem avaliados da Corte e notável por sua educação exemplar, mas não tinha espaço para meninas.

Em 1847, sua abordagem pedagógica foi criticada, até ridicularizada, por um autor anônimo no jornal "O Mercantil". O texto reflete a mentalidade da época sobre a educação feminina:

"(...) Há casas de educação que têm o mau gosto de ensinar às meninas a fazer vestidos ou camisas. Mas parece que D. Augusta acha isso muito prosaico. Ensina-lhes latim. E porque não grego e hebraico? Pobre diretora! Está tão satisfeita de si mesma e de seu colégio; está tão intimamente persuadida que é o primeiro estabelecimento de instrução do império, que, em verdade causa dó arrancar-lhe tão suave ilusão! (...) É pois natural que D. Nisia que nunca viu senão o próprio colégio o ponha acima dos demais. Há mais nesta opinião mais ingenuidade do que vaidade. Notaremos apenas a D. Floresta que se esquece um tanto do verdadeiro fim da educação, que é o de adquirir conhecimentos úteis e não vencer dificuldades, sem nenhuma utilidade real (O Mercantil, 17 de janeiro de 1847)."

Quando da critica, o "Collégio Augusto" já tinha nove anos de funcionamento e ainda viveria mais oito, pelo menos. 

Em suas obras de 1847, de caráter pedagógico, Nísia aponta que a causa da discriminação da mulher estava na ausência de uma educação formal feminina. A primeira legislação brasileira que autorizava a abertura de escolas públicas femininas, tinha sido promulgada apenas há poucos anos, em 1827 e Nísia acreditava que o acesso à educação possibilitaria às mulheres tomarem consciência de sua condição de desigualdade em relação aos homens. Em "Opúsculo Humanitário" ela trata do fracasso geral do padrão de ensino e denuncia, sem expor nomes, escolas da Corte regidas por estrangeiros que seriam, para ela, despreparados para exercer a função de educadores.

A relevância de Nísia para o pensamento feminista no Brasil é óbvia, porém algumas pesquisadoras apontam a posição ambígua em sua militância. Segundo estas pesquisadoras, Nísia se encaixaria no que chamamos "bom feminismo", que não pretendia alterar profundamente as relações sociais. Seu feminismo se mistura com uma visão romântica da mulher, onde a dedicação à família e ao lar eram a única trajetória possível. Em diversos momentos da obra de Nísia, a manutenção desse sistema familiar é sugerida. No entanto, é consenso entre os pesquisadores uma mudança ideológica no pensamento de Nísia ao longo dos anos. Em sua primeira obra, ela rejeita o radicalismo para mudanças na ordem social, porém, após sua passagem pela Europa, passa a ser mais incisiva nas críticas.

Vida na Europa

Em 1849, Livia, a filha de Nísia, sofre um acidente grave ao cair de um cavalo e precisa se tratar na Europa. Nísia retorna ao Brasil em 1852, onde vai se dedicar à produção de artigos para jornais, que vão resultar na compilação que deu origem ao livro "Opúsculo Humanitário". Durante uma pandemia de cólera que atingiu o Rio de Janeiro em 1855, Nisia se voluntaria como enfermeira, voltando para a Europa no ano seguinte. Ainda em 1856, o Collegio Augusto encerra suas tividades após dezessete anos de funcionamento.

Nísia permanece na Euriopa até 1872, quando viaja por diversas cidades da Itália e Grécia, publicando obras em francês e escrevendo seus relatos de viagens. Neste período, a autora teve contato com o Positivismo durante um curso de História Geral da Humanidade, ministrado pelo próprio Augusto Comte, filósofo francês. Nísia e Comte constrem uma grande amizade, e ela o presenteou com um exemplar de "Opúsculo Humanitário", que foi bastante elogiado pelo filósofo.

Nísia regressa ao Brasil em 1872, durante a campanha abolicionista de Joaquim Nabuco, mas volta à Europa apenas três anos depois, estabelecendo residência no interior da França, onde viria a publicar seu último trabalho, Fragments d'un Ouvrage Inédt: Notes Biographiques (em tradução livre Fragmentos de uma obra inédita: notas biográficas). Nísia faleceu em Rouen, na França, em 24 de Abril de 1885, aos 74 anos. Quase setenta anos depois, seus restos mortais foram levados para sua cidade natal, Papari, no Rio Grande do Norte, que mudaria de nome para Nisia Floresta em homenagem à autora.

Nísia Floresta Brasileira Augusta, foi uma mulher a frente do seu tempo, que enfrentou preconceitos e costumes, dedicando sua vida à garantir o direito das mulheres à educação. Como a primeira mulher a publicar um livro no Brasil, deixou uma vasta obra escrita, onde mostra sua genialidade e sua paixão pela emancipação das  mulheres e sua luta frente à desigualdade de gênero. Em minhas pesquisas sobre ela, a frase de Newton não me saía da cabeça: "se vejo mais longe, é por estar sobre os ombros de gigantes". Se eu, como mulher, pude aprender a ler e escrever, cursar uma universidade e me tornar escritora, devo isso a gigantes como Nísia, que gentilmente me permite estar em seu ombro para enxergar mais longe.




Livros de Nísia Floresta:

Conselhos à Minha Filha: https://x.gd/3Bw1y

Funy ou O modelo das donzelas: https://x.gd/WkHdS


Bibliografia:

Livros:

DUARTE, Constância L. Nísia Floresta. 1. ed. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010.

ARAÚJO, Nara (ed.). Escritoras do Século XIX: Antologia. 2. ed. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres/Edunisc, 2000.

Artigos Científicos:

A CONTRIBUIÇÃO DE NÍSIA FLORESTA PARA A EDUCAÇÃO FEMININA: pioneirismo no Rio de Janeiro oitocentista. Revista Outros Tempos: Dossiê História e Educação, [s. l.], v. 7, Dezembro 2010.

Sites:

https://pt.wikipedia.org/wiki/N%C3%ADsia_Floresta_(escritora)

https://educacaointegral.org.br/reportagens/nisia-floresta/

Obras:

https://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/or1622247/or1622247.pdf

https://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasgerais/drg136487/drg136487.pdf

https://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasgerais/drg376981/drg376981.pdf

https://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasgerais/drg97338/drg97338.pdf

https://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasgerais/drg291826/drg291826.pdf

https://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasgerais/drg1414580/drg1414580.pdf

Impressos:

http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=228133&pagfis=3467

http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=228133&pagfis=3407

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