Para Clarice, com amor | Desafio 30 dias de escrita | #03: escreva uma carta para alguém que você admira

by - agosto 09, 2023

 


Querida Clarice,

    Escrevo esta carta temendo perturbá-la e, principalmente, não lhe despertar o menor interesse. Me acostumei de tal forma a pensar em você que me é estranho precisar contar coisas corriqueiras do dia-a-dia, pois tenho a impressão de que você sabe tudo que se passa comigo. Estou lendo um livro com todas as suas cartas. Sim, no século XXI, a editora Rocco compilou e publicou todas as suas cartas em um livro único, enorme, um calhamaço de doer os braços. Devo dizer que para uma pessoa que dizia odiar escrever cartas, você escreveu inúmeras! Mas lê-las é uma experiência deliciosa. Me faz sentir como se fêssemos amigas.

    Semana passada também ouvi um podcast com sua voz. O que é podcast? Bem, é como se fosse um programa de rádio, mas que ouvimos através de nossos telefones. Ah, não, não precisamos ficar com o aparelho no ouvido. Hoje em dia os telefones tem fones de ouvido e autofalantes. Além de ligações, eles também funcionam como mini televisores e mini diskmans. Também podemos mandar mensagens escritas, de preferência curtas, para outras pessoas. Ninguém mais escreve cartas. Agora mandamos mensagens, que também podem ser uma gravação de voz. No futuro, vão compilar as mensagens de texto e áudio de escritores famosos, não suas cartas. Sim, o mundo mudou um bocado. Ah, claro! É um mundo muito interessante! Um pouco cansativo, às vezes, mas acho que isso o mundo sempre foi.

    Bem, o podcast que ouvi reproduziu uma de suas entrevistas ao MIS. São mais de duas horas de conversa entre você e três entrevistadores. Fique surpresa de você ter a língua presa e das pessoas pensarem que você falava assim por conta do sotaque ucraniano! Percebi que temos algumas coisas em comum. Uma delas é esquecer sobre o que estava falando no meio da frase, outra é ter muitos pensamentos em pouco tempo. Você se definia como uma tímida arrojada, e vou aqui te pedir permissão para usar essa definição para mim mesma. Mais uma coisa que temos em comum: somos tímidas, mas aprendemos a burlar esse traço. Você também se definiu como uma pessoa excessivamente sensível, e apesar de eu não achar que isso seja exatamente uma qualidade, tenho que reconhecer que também me sinto assim. A emoção me transborda. Na entrevista você diz muitas coisas interessantes sobre sua escrita, seus livros, seu processo criativo. Algumas de suas revelações usei como dicas. E outras me ajudaram a enteder algumas coisas que nunca entendi direito nos seus livros. As duas horas de entrevista passam como um sopro, a gente nem sente. Obrigada por ter tirado um tempo para gravar para o MIS.

    Suas cartas, as do livro da Rocco, me provocam variadas emoções. Principalmente aquelas que você escrevia para suas irmãs e seus filhos. Você era, de fato, como se descrevia: uma pessoa "corriqueira, (...) que sofre, como todas as pessoas do mundo, as mesmas dores e os mesmos anseios." E eu acho que isso é a coisa mais extraordinária que se pode ser: simples. Sei que você não vai confundir simples com simplório, mas como escrevo esta carta em um blog, quero deixar a ressalva ao meu leitor: não confunda simples com simplório, são coisas diferentes.

    O que é um blog? É tipo um jornal, mas não é impresso. A gente lê pela internet, uma rede que conecta tudo que é eletrônico, usando computadores ou telefones. Hoje em dia, Clarice, você pode acender as lâmpadas da sua casa do Rio de Janeiro, enquanto toma um café em Zurique. É, eu também não vejo muita utilidade nisso, mas hoje em dia é possível. Voltando aos blogs, qualquer um pode ter um blog. O meu, por exemplo é gratuito. Não pago nada para escrevê-lo e quem lê não paga nada para lê-lo. Como vivem os jornais hoje em dia, já que ninguém paga nada? Bem, o mundo editorial mudou muito no século XXI. Sei que a humanidade sempre sofreu com notícias falsas, afinal, uma das coisas que o ser humano faz melhor é mentir, não é mesmo? Mas neste século elevamos isso a milésima potência. Existem blogs que só contam mentiras e ganham rios de dinheiro com anunciantes, que estão sempre procurando os veículos que tem mais leitores, independente de sua idoneidade. Mas não se preocupe, no meu blog eu não conto (tantas) mentiras (tão) escandalosas, e ele também não é acessado por quase ninguém. Nossa correspondência está a salvo aqui.

    Clarice, eu quero te dizer que você me ajudou muito quando eu era adolescente e, um pouco depois, quando já era uma mulher jovem. Eu não entendi muito bem "A hora da estrela", primeiro livro seu que li. Mas "A via crucis do corpo" foi um pilar para eu conseguir lidar com sentimentos complexos que tinha naquele momento. "Mas quem pode dizer com sinceridade que se realizou na vida? O sucesso é uma mentira." Essa frase me acompanhou desde que a li e até hoje tira dos meus ombros um fardo pesadíssimo. Outra frase também grudou em mim: "a vida tem dessas coisas, de vez em quando não sobra nada dentro da gente. Mas é bom prestar atenção porque isso só acontece enquanto se vive." Obrigada por ter escrito, por ter publicado.

    Eu também sou escritora, mas nem de longe sou tão genial quanto você. Já escrevi dois livros, e estou escrevendo o terceiro. Na verdade, estou com dois projetos de escrita em andamento, e ando ansiosa com o resultado, mas acho que é só por que eu não tenho me dedicado muito a escrever. Aliás, foi por isso que comecei um desafio literário de 30 dias. Consiste em escrever todos os dias, durante 30 dias, sobre temas previamente estabelecidos. O tema de hoje era "escreva uma carta para alguém que você admira", e eu escolhi você. Ah, não, esse não é um desafio que estou fazendo em grupo. Eu não sou muito boa com grupos, Clarice. Sou uma pessoa muito cheia de medos, e tímida demais (porém arrojada!). Grupos me desgatam de uma forma que me deixam tão exausta que eu não conseguiria fazer algo em grupo por 30 dias sem ter uma síncope nervosa em seguida. Esse desafio é pessoal. Sou eu comigo mesma tentando desempacar a escrita. Hoje é o terceiro dia do desafio e até aqui, acho que estou indo bem.

    Admito que a escolha do seu nome para escrever esta carta não foi aleatória. Eu criei uma oficina de escrita criativa que se chama "Para Clarice, com amor", onde vou falar um pouco sobre sua biografia, sua obra e ler algumas cartas e contos seus. No final, os participantes vão produzir cartas para você, como eu estou fazendo agora. Quando vi que o desafio de hoje era escrever uma carta, não poderia ter escolhido outra pessoa. Ao final da oficina, as cartas vão se tornar um e-book. O que é e-book? É um livro digital, que a gente lê pelo telefone. Como eu disse, o mercado editorial mudou muito! Eu adoro e-books! Ler no telefone é mais confortável e dá para consultar o significado das palavras sem ter que se levantar para pegar um dicionário. A parte ruim é não sentir o cheiro dos livros (motivo pelo qual eu ainda compro livros físicos) e não perder a concentração para outras mídias. Eu, que demoro para me concentrar, tive que comprar um leitor digital, que não tem tantas distrações.

    Sim, Clarice, os telefones dominaram o mundo. Agora chamam smartphones. Isso mesmo: telefones inteligentes. E eu concordo com o nome, pois eles são mais inteligentes que muita gente. Tem muita coisa sendo discutida sobre o universo da tecnologia. Aliás, a tecnologia é super avançada, uma doideira. É tão avançada que, ás vezes, eu tenho vontade de voltar a escrever a mão, só pra contrariar o mundo, como se adiantasse de alguma coisa. Já cantava Elis: o novo sempre vem. É preciso se adaptar, por que resistir resulta em uma morte lenta e horrorosa.

    Bem, acho que esta carta já passou da hora de acabar. Espero que você tenha gostado das notícias do mundo e que esteja escrevendo muito aí, nessa outra dimensão em que você está agora. Escreva, Clarice, nunca deixe de escrever, e se não estiver muito atarefada ou com muita preguiça, me responda esta carta. Eu sei que, de algum jeito, sua resposta vai chegar até aqui.

Com amor,

Marina.

    



Texto #03 do Desafio 30 dias de escrita.



You May Also Like

0 comentários