Chá de melissa com leite | Desafio 30 dias de escrita | #02: descreva a casa de sua avó

by - agosto 08, 2023


     O portão baixo ocupava metade da frente da casa, a outra metade era protegida por um muro, e uma das janelas da casa se abria para a calçada da frente, bem ao lado do portão. O portão mostrava uma varanda espaçosa, de piso em cimento queimado cinza mesmo, sem a tradicional cera vermelha das casas do interior. Os pilares da varanda faziam fronteira com o quintal, que se estendia pela lateral da casa. Sem árvores ou gramado, o mato baixo se erguia quase sem resistência, mas eventualmente minha avó se dedicava a tirar as ervas daninhas com as mãos, ficando por várias horas curvada arrancando todo tipo de folhagem da terra. Nessas ocasiões, se empenhava em reforçar o acero das plantas que davam chá ou tempero. "Olha como o boldo tá viçoso!", dizia.

    Entrando na casa, a sala tinha um pé direito alto, um sofá antigo de braços de madeira escura adornados com entalhe de abacaxi. O estofado era amarelo, com detalhes em branco, pequenos bordados de flor-de-lis estilizado. Eram duas poltronas e um sofá maior, de três lugares. A estante quase não tinha livros, mas era cheia de imagens de santos, fotografias de todos os familiares (muitos que eu nunca saberia quem eram) e alguns bibelôs desparcerados. Da sala você tinha acesso aos dois quartos e ao banheiro, na direita; e à cozinha, na esquerda.

    O primeiro quarto era amplo e tinha um grande guarda-roupas em uma das paredes, sendo que as outras duas paredes guardavam uma cama de casal e uma de solteiro. Era onde eu dormia com minha mãe. O segundo quarto era um pouco menor, e tinha só duas camas de solteiro e uma cômoda grande, nele dormiam minha avó e meu irmão. O banheiro minha mãe chamava de "latifundio improdutivo", era enorme, como na maioria das casas antigas, e muito de seu espaço era ocioso. O piso era um mosaido de cacos de todo tipo de estampa, e o espaço do chuveiro era limitado apenas por uma cortina de plástico. O vaso sanitário era marrom, parecendo um caramelo escuro; e a pia era rosa bebê. Em cima da pia, ficava um pequeno espelho, que escondia um armário embutido na parede.

    Para chegar a cozinha era preciso descer dois ou três degraus, que eu, ainda menina, achava altos demais. Tinha uma pia e um fogão, e se abria para um comodo anexo, que poderia fazer as vezes de quarto, mas nós usávamos como sala de jantar, onde ficavam um armário, uma mesa com seis cadeiras e a geladeira. Todos os móveis da casa eram de madeira escura. "Tipo embuia", dizia minha mãe, com orgulho, e eu logo entendia que isso devia significar uma coisa boa.

    A casa ficava em frente a uma igreja da "Congregação Cristã do Brasil" e me lembro de ouvirmos a música e a pregação algumas vezes na semana, quando ficava difícil assistir TV. Uma vez, umas crianças da igreja que brincavam na calçada começaram a me mostrar a língua e eu revidei, mostrando a língua também. Enraivecida, uma das crianças, uma menina, me atirou uma pedra, que acertou em cheio minha cabeça. Já era por volta das oito da noite e minha mãe estava dando aulas, ela era professora. Eu estava sozinha com minha avó. Não me lembro bem o que aconteceu, mas no dia seguinte um dos responsáveis pela igreja veio se desculpar com minha mãe, mas repreendeu alguma atitude de minha avó. Imagino que ela deve ter esbravejado com a menina que atirou a pedra, ameaçando com uma vara de tronco de roseira, que guardava para nos aplicar corretivos.

    Foi naquela casa que parei de chupar chupeta, para começar a chupar os dedos. Um dos meus tios, veio nos visitar em um fim de semana, aocmpanhado de sua esposa, uma mulher um pouco esnobe e muito mais endinheriada que a gente. Ela então começou a implicar com a minha chupeta. Eu devia ter uns seis anos de idade e ela disse que levaria minha chupeta quando fosse embora, por que não concordava que uma criança daquela idade ainda chupasse chupeta. Minha mãe - que estava quase todo tempo muito cansada por trabalhar três períodos dando aulas e ainda cuidar de quase tudo na casa, visto que minha avó estava muito velha para conseguir arcar com as responsabilidades de uma criança e um adolescente -, não ofereceu resistência e deixou a tal tia levar a chupeta. Na noite de domingo, quando eels foram embora, eu cai na choradeira. Algumas horas depois, sem conseguir dormir, enfiei o dedo na boca e só fui conseguir largar o péssimo hábito muitos anos depois.

    Me lembro de minha avó contando histórias de terror para mim, antes de dormir, naquele quarto que tinha o teto muito alto. Ela jurava que as histórias eram verdadeiras e que ela mesma havia visto um lobisomem! Acho que veio daí meu gosto por histórias macabras.

    Quase não tenho lembranças da minha mãe naquela casa, mas me lembro de flashs da minha avó, já com a artrite avançada, caminhando com dificuldade pelos cômodos. Algum tempo depois, nós nos mudamos de cidade, para minha avó ser tratada de uma fratura do fêmur. Minha mãe nos deixaria alguns meses depois da mudança, vitima de um acidente de carro. A vida aconteceu, mas sempre que passo em frente a esta casa, me lembro do episódio da menina da igreja e da minha avó dizendo "Olha como o boldo tá viçoso" e fazendo chá de melissa com leite no lanche da tarde.


Texto #02 do Desafio 30 dias de escrita.

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