O mundo da noite | Desafio 30 dias de escrita | #04: escreva uma cena do ponto de vista de uma criança de seis anos

by - agosto 10, 2023

     


    A menina acordou assustada, abriu os olhinhos um pouco inchados no meio da escuridão e ia gritar pela mãe. Mas lembrou-se que a mãe não viria. Começou a esquadrinhar o escuro, e o que poucos segundos antes era breu, agora ganhava alguns contornos, conforme a vista se acostumava com a pouca luz. Sentiu as lágrimas escorrerem pelo rosto, o narizinho foi ficando tapado pelo acúmulo daquela coisa meio nojenta que sai quando a gente chora. Limpou o rosto com a mãozinha, um pouco desajeitada, como qualquer criança de seis anos. Depois limpou o nariz no lençol, e só então se lembrou que a tia ficaria uma fera no dia seguinte, por ter que lavar o lençol. Pensou em lavar ela mesma, escondido, mas não sabia como lavar um lençol. 

    Um medo enorme tomou conta de seu coração. A tia ia brigar, ia gritar, ia ficar o dia todo fingindo que a menina não existia, sem responder suas perguntas, ou respondendo muito brava. A menina iria para escola chorando, culpada, o coraçãozinho apertado no peito o dia todo. A tia não ia aceitar as desculpas, ela sabia. A mãe aceitaria. Na verdade a mãe nem ficaria brava, não gritaria, e daria um beijinho no rosto da menina quando ela fosse para a escola. Sentia falta da mãe. Ela não entendia para onde a mãe tinha ido, não sabia o que era morrer. Mas sabia que agora tinha que agradar todo mundo, por que senão iria para um lugar chamado orfanato, que devia ser muito ruim, já que parecia que era castigo morar lá. Ou pior, segundo a tia, se ela não agradasse a todo mundo, iria para a casa do pai, num lugar chamado favela, onde não tinha escola. A tia ainda dizia que o pai bebia. "É isso que você quer?" a tia perguntava, muito brava. E a menina só balançava a cabeça, fazendo que não, com medo de ser mandada embora. Ali, com a tia, não era feliz, vivia com medo de não agradar, de fazer alguma coisa errada, mas achava que ali era o melhor lugar para estar, agora que a mão tinha ido para o céu.

    Quando a tia não gritava, era boa com a menina. Nunca abraçava, ou beijava, mas tratava bem, fazia piadas, fazia até bolo, quando estava feliz. Mas a tia ficava brava e triste muito rápido e muitas vezes, e a menina acabava sempre triste também. E tinha o primo. A menina chegou a pedir para tia para dormir na cama dela, longe do primo, mas a tia não deixou. A menina não gostava quando o primo fechava a porta do quarto e vinha muito perto dela. Ameaçou de gritar, de chamar a tia. "Ela vai brigar com você, não comigo. Você tem que ser boazinha, senão ela te manda embora", disse o primo. E a menina acreditou, afinal, a tia brigava todo dia, por quase tudo. A menina não era feliz ali, mas sentia que seria ainda menos feliz na favela, com o pai que bebia, ou no orfanato, o lugar de castigo. A tia ainda dizia que o pai só queria a menina por que ela recebia da mãe uma coisa chamada pensão. A menina não sabia o que era isso, nunca tinha visto uma pensão, mas se a mãe estava dando, devia ser bom. E ela não queria que o pai tomasse dela.

    Depois de um tempo segurando o choro para não precisar mais limpar o nariz no lençol, a menina se levantou, muito quietinha, sem fazer nenhum barulhinho. Andou até o guarda-roupa que, no escuro, parecia um urso enorme sentado dentro do quarto. Abriu a porta. "Com licença, senhor Urso." ela pensou. Não falou em voz alta para não acordar o primo, mas sabia que o Sr. Urso tinha entendido. Ela falava com todas as coisas na cabeça dela e todas as coisas respondiam. Ela falava até com outras pessoas na cabeça dela, elas eram boazinhas e gostavam de brincar. A menina passou os dedinhos pequenos pelos casacos e camisas que o Sr. Urso guardava, até que sentiu o tecido muito, muito, muito macio. Puxou do cabide e voltou para a cama, ainda muito quietinha. Enfiou o nariz na camisola e sentiu o cheiro da mãe. Agora não estava mais sozinha, conseguia se lembrar do cheiro da mãe. Ficou assim, sentada na cama com a camisola da mãe por muitas e muitas horas. Até que o sol começou a entrar pelas frestas da janela. E ela pensou:

"Venha, senhor Sol

Venha esquestar o dia.

Venha trazer o rouxinol

E encher a vida de alegria."

    A partir daquela noite, ela pensaria coisas bonitas assim sempre que ficasse triste. E para nunca mais esquecer essas coisas, ia pedir para a professora escrever todas elas em um papel, para ela poder copiar e guardar para sempre todos esses pensamentos felizes.

    O sol nasceu, ela entregou a camisola para o Sr. Urso e esperou a tia entrar no quarto, chamando para ir para a escola. Ela ainda tinha esperança da tia não ver o lençol sujo de choro, mas se preparava para o pior. Pensou na mãe, pensou mais um ou dois pensamentos felizes, e o a porta do quarto se abriu.

   Todos os dias, a menina era triste, mas fingia ser feliz, para não desagradar a tia. Todas as noites, porém, ela era feliz de verdade, com seus pensamentos felizes e todas os amigos que tinha dentro da cabeça. O mundo da noite, do escuro, de que ela morria de medo antes da mãe ir para o céu, agora era um mundo de aventuras, alegrias e boas histórias. Um mundo feliz. Sempre pedia para a professora escrever tudo para ela copiar. Copiando no papel, dava vida eterna a toda aquela felicidade. Ninguém que morava dentro de sua cabeça iria pro céu. Ela nunca mais seria sozinha. Agora tinha as histórias.



Texto #04 do Desafio 30 dias de escrita.


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