"Os abismos" e o fim da infância | Resenha

by - agosto 30, 2023




    Este é mais um dos livros que eu posso dizer que me salvaram. Vários livros já me ajudaram ao longo da vida, alguns me ensinaram a lidar com algumas situações, outros me mostraram o melhor caminho a seguir, e tem aqueles que me ajudaram a superar traumas profundos. É o caso de "Os abismos". Pilar Quintana conseguiu atingir um lugar no meu coração que me fez entender, reorganizar e ressignificar experiências traumáticas da infância. Minha identificação com Claudia, a protagonista, foi imediata, e ao longo da leitura me vi nela muitas vezes, sobretudo no interesse prematuro pelo suicidio, tema que a autora aborda sem tabus ou preconceitos, de maneira franca e bastante delicada. 

    Considerada um fenômeno da literatura contemporânea colombiana, Pilar Quintana ganhou o Prêmio Alfaguara, um dos mais prestigiosos da língua espanhola, por "Os abismos". O livro me tirou de uma ressaca literária de quase um mês após a leitura de "Mataram Marielle" e "O plano Flordelis". Tentei embarcar em várias outras leituras, mas nada fluía, até que "Os abismos" me conquistou e terminei a leitura em três ou quatro dias.

    Pilar Quintana tem uma linguagem simples, direta, porém cheia de significados e muito envolvente. Aqui conhecemos Claudia, uma menina de oito anos que conta a história de um período da vida de sua família. Através do olhar infantil e, por isso mesmo, bastante honesto, Claudia capta o mundo interno de todos a sua volta. Sua mãe, que também se chama Claudia, é a personagem mais abordado na leitura, enquanto as outras personagens gravitam em torno da relação que se forma entre as duas. Duas coisas me chamaram a atenção na narrativa. Primeiro, a escolha de mãe e filha terem o mesmo nome. Este artifício narrativo mostra a ligação intensa que as crianças tem com a mãe, sua idealização da figura materna e a necessidade de receber atenção da mãe. Ao mesmo tempo, os nomes iguais mostram que a mãe, muitas vezes, vê a filha como uma extensão de si, colocando expectativas exageradas (não é o caso nesta história) ou até negligenciando a criança como se ela fosse apenas parte da mãe, uma parte que compreende tudo que se passa em seu mundo interno. É curioso ver como Pilar constroi a relação das duas, deixando nítida a sensação da criança de ser quase invisível para a mãe, e como a própria mãe não consegue superar este afastamento, mesmo que muitas vezes se sinta culpada por ele. A segunda coisa que me chamou a atenção, foi como a narrativa explica exatamente o título do livro. Claudia fala de seu proprio abismo interno, enquanto consegue narrar e captar os abismos internos de todos os outros personagens. E o fascínio da criança por um abismo real, nas montanhas de Cali, consegue concatenar todos esses abismos internos.

    Dizem que quando você olha pro abismo, ele olha de volta pra você. Acho que não é nenhum exagero dizer que Claudia, a narradora criança, olhou para o abismo e sustentou o olhar quando ele lhe olhou de volta. É muito interessante perceber como nenhum adulto em torno dela percebe sua derrocada lenta para um humor desanimado, nem seu entusiasmo gradativo por histórias mórbidas, como um sintoma (ainda que sutil) de que algo estava errado. Quintana consegue mostrar como, muitas vezes, crianças precisam lidar sozinhas com emoções e situações extremamente dificeis, pois os adultos a sua volta preferem fingir que nada aconteceu. Nisso, eu também me identifiquei muito com a pequena Claudia.

    A solidão de Claudia também foi um ponto de identificação para mim. Ver a menina que tem amigos na escola, e por isso não chama a atenção de nenhum adulto, mas que na maior parte do tempo está sozinha, em casa, pedindo atenção de adultos que, de tão presos dentro de si mesmos, não conseguem vê-la, foi para mim como ver a mim mesma. A distância do pai, sempre preso em silêncios e aparente normalidade, também me lembrou minha figura parterna, alguém que estava sempre ali, mas que nunca deixou de ser um estranho.

    O fato do livro ser dividido em quatro partes mostra a maturidade da escrita de Quintana, que conseguiu, na minha opinião, abordar os estágios do luto em cada uma delas. É como se Claudia estivesse vivendo o luto de perder sua ideia romantizada da mãe, e esta ficasse cada dia mais humana a seus olhos. Primeiro, a menina nega este processo, depois tenta chamar a atenção da mãe, como se barganhasse com ela para não deixar morrer sua heroína idealizada, então ela passa a sentir raiva da mãe, seguido de um processo de depressão e, finalmente, a aceitação de que a mãe é apenas um ser humano como todos os outros, que é falha, que comete erros, tem suas fragilidades e nem sempre está certa. Neste sentido, o livro descreve exatamente o fim da infância, quando nos damos conta de que nossos pais não são perfeitos. Freud disse que só nos tornamos adultos quando matamos figurativamente nossos pais dentro de nós, ou seja, quando aceitamos sua humanidade, suas falhas. Pilar Quintana conseguiu captar com perfeição esse processo subjetivo do final da primeira infância.

    A construção dos cenários e da paisagem da história merece uma menção honrosa. A autora consegue colocar o leitor na cena sem precisar de longas descrições. Com sutileza e, mais uma vez, delicadeza, Quintana nos mostra Cali e suas ruas, suas montanhas e seus abismos de uma maneira poética, mas muito real, deixando claro como é cada lugar.

    O livro tem linguagem fluida e, uma vez que capta a atenção do leitor, se torna uma leitura rápida. Logo nas primeiras páginas nos vemos enfiados dentro do coração de Claudia, vendo o mundo pelos seus olhos, sem perceber o tempo passar durante a leitura.

    Pilar Quintana é mais uma prova de que a literatura feminina da América Latina merece cada vez mais destaque. Junto com Isabel Allende, foi uma das melhores leituras do ano. Já comprei seu outro livro, "A cachorra", e não vejo a hora e embarcar nesta leitura.

    "Os abismos" não é um livro difícil de ler, apesar de abordar temas dolorosos. Em alguma medida, todos nós vamos nos identificar com Claudia e com sua família, mesmo ela sendo tão diferente das nossas próprias famílias. E é isso que torna este um livro tão incrível.

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