Pálidas manhãs
1883
Naquela madrugada, a famosa garoa fina e gelada afogava os telhados surrados e tortos dos
casebres do centro de São Paulo. A neblina densa, velha conhecida dos moradores
da região, impedia a visão de mais do que um passo à frente. Ruas estreitas
ramificavam-se em um emaranhado de vielas mal iluminadas que se abriam para
pequenos pátios, onde portas surradas, dispostas lado a lado, davam um pouco de
privacidade aos casebres de um, no máximo dois cômodos, onde se abrigavam pelo
menos sete pessoas, a maioria crianças. O cheiro de esgoto impregnava as
narinas, desprendendo-se das latrinas compartilhadas por pelo menos dez
famílias. Para os condenados a viver naquele pedaço de mundo, dignidade e
justiça eram um luxo quase inexistente.
Um
jovem guarda fazia sua ronda quando os primeiros raios de sol despontavam atrás
dos cortiços, esfriando ainda mais o ar, negando-se a trazer um pouco de
conforto. É sempre mais frio durante a aurora. No fim da rua, uma centena de
metros a sua frente, o novato percebeu um vulto. Parecia ser um homem, baixo e muito
magro, carregando um saco pesado, algo incomum àquela hora da manhã. Era muito
cedo para os trabalhadores normais saírem às ruas, e muito tarde para os
feirantes, que, a essa altura, já estavam com suas bancas quase montadas, longe
dali.
—
Alto lá! – disse o guarda, pensando ser um ladrão e caminhando rapidamente em
direção à estranha cena.
Mal
o cidadão levantou a cabeça, tomando ciência da presença do guarda, soltou o
saco e correu rua acima, desaparecendo entre as milhares de travessas desertas.
O policial, então, desatou a correr na direção do homem, tentando alcançá-lo, sem
sucesso. Quando chegou perto do saco, o que viu nunca mais sairia de sua mente.
Um corpo pequenino, muito magro, jazia no chão. Uma menina. A pele cinza por
baixo da sujeira, mostrava que havia sentido frio momentos antes de sua morte.
Parecia ter não mais que oito anos, e seus cabelos escuros estavam penteados em
duas tranças, que caíam úmidas e duras de sujeira de cada um dos lados da
cabeça. No rosto encardido, um semblante de horror fazia com o que os olhos,
muito negros, parecessem faiscar. Suas roupas, uma saia na altura dos
tornozelos e uma camisa, grandes demais para seu corpo e muito puídas, estavam rasgadas
e enxarcadas de sangue. No meio de seu torso, uma abertura que ia do umbigo à
altura do externo deixava as vísceras à mostra. Um calor morno ainda se
desprendia do corpo.
Era a terceira criança assassinada nos cortiços da Santa Ifigênia, a terceira alma a se perder para sempre em uma pálida manhã paulistana.
...
Talvez aqui comece uma nova história...
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