Pálidas manhãs

by - abril 23, 2023

            


            1883

Naquela madrugada, a famosa garoa fina e gelada afogava os telhados surrados e tortos dos casebres do centro de São Paulo. A neblina densa, velha conhecida dos moradores da região, impedia a visão de mais do que um passo à frente. Ruas estreitas ramificavam-se em um emaranhado de vielas mal iluminadas que se abriam para pequenos pátios, onde portas surradas, dispostas lado a lado, davam um pouco de privacidade aos casebres de um, no máximo dois cômodos, onde se abrigavam pelo menos sete pessoas, a maioria crianças. O cheiro de esgoto impregnava as narinas, desprendendo-se das latrinas compartilhadas por pelo menos dez famílias. Para os condenados a viver naquele pedaço de mundo, dignidade e justiça eram um luxo quase inexistente.

Um jovem guarda fazia sua ronda quando os primeiros raios de sol despontavam atrás dos cortiços, esfriando ainda mais o ar, negando-se a trazer um pouco de conforto. É sempre mais frio durante a aurora. No fim da rua, uma centena de metros a sua frente, o novato percebeu um vulto. Parecia ser um homem, baixo e muito magro, carregando um saco pesado, algo incomum àquela hora da manhã. Era muito cedo para os trabalhadores normais saírem às ruas, e muito tarde para os feirantes, que, a essa altura, já estavam com suas bancas quase montadas, longe dali.

­— Alto lá! – disse o guarda, pensando ser um ladrão e caminhando rapidamente em direção à estranha cena.

Mal o cidadão levantou a cabeça, tomando ciência da presença do guarda, soltou o saco e correu rua acima, desaparecendo entre as milhares de travessas desertas. O policial, então, desatou a correr na direção do homem, tentando alcançá-lo, sem sucesso. Quando chegou perto do saco, o que viu nunca mais sairia de sua mente. Um corpo pequenino, muito magro, jazia no chão. Uma menina. A pele cinza por baixo da sujeira, mostrava que havia sentido frio momentos antes de sua morte. Parecia ter não mais que oito anos, e seus cabelos escuros estavam penteados em duas tranças, que caíam úmidas e duras de sujeira de cada um dos lados da cabeça. No rosto encardido, um semblante de horror fazia com o que os olhos, muito negros, parecessem faiscar. Suas roupas, uma saia na altura dos tornozelos e uma camisa, grandes demais para seu corpo e muito puídas, estavam rasgadas e enxarcadas de sangue. No meio de seu torso, uma abertura que ia do umbigo à altura do externo deixava as vísceras à mostra. Um calor morno ainda se desprendia do corpo.

Era a terceira criança assassinada nos cortiços da Santa Ifigênia, a terceira alma a se perder para sempre em uma pálida manhã paulistana.

...

Talvez aqui comece uma nova história...

 

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