Guará-homem

by - agosto 30, 2022

 

Guará-homem

Diz a lenda que em certa região do planeta Terra, muito antes da existência dos primeiros homens, quando os deuses ainda andavam pela superfície do mundo, algumas árvores se rebelaram contra o rei sol. Especialmente severo naquele local, o rei mandava sua luz mais brilhante, irradiando um calor intenso, quase insuportável, sobre a vegetação. Cansadas da pouca umidade que resultava da grande evaporação causada pela ardência do rei, os exuberantes seres, com seus troncos longos e altos, e suas folhas largas e grossas, que naquela época ainda emitiam sons e falavam a língua comum, uniram-se e passaram a reivindicar por temperaturas mais amenas. Enfurecido, o rei sol aplicou-lhes uma maldição. Não apenas viveriam sobre uma atmosfera escaldante, como também seriam condenadas a passarem o resto de sua existência, bem como todos os seus descendentes, curvadas em sua homenagem, sem nunca poderem se levantar a uma altura acima da cernelha dos cavalos que pastavam longe ali. Assim, a região - que hoje os filhos dos primeiros homens conhecem como cerrado - foi sentenciada a uma vegetação de galhos tortuosos e baixos, curvando-se à realeza do sol.

Porém, a partir da hora do crepúsculo, quando uma cortina arroxeada cobria o céu, as árvores aproveitavam a ausência do rei para mostrarem sua fúria. A região então era coberta por sombras fantasmagóricas que, refletidas pela lua, mostravam no chão a grandeza daquelas plantas.

Ali também, nessa mesma época, vagueava o primeiro lobo do mato de pelagem muito macia, lisa e colorida em vermelho, adornado com uma linda crina curta e negra. As pernas esguias conferiam ao animal um andar elegante, e as orelhas carnudas sempre em pé davam-lhe uma atitude desconfiada. Tímido, o aguará não gostava de companhia e era sempre visto pelas árvores a andar solitário, alimentando-se dos frutos de seus galhos. Grande apreciador dos alimentos fornecidos, o aguará passou a ter por elas muita afeição. Quando soube da punição do rei sol para elas, decidiu que – em sinal de lealdade e gratidão-, enquanto se mantivesse a maldição, ele sairia da toca apenas ao entardecer, caminhando pelo cerrado somente durante a noite, negando-se a compartilhar a terra com o sol incandescente.

Assim feito, muito antes dos primeiros homens, aguará e árvores mantiveram uma convivência familiar, onde o lobo as ajudaria a espalhar suas sementes pela planície. Após muitas e muitas gerações de árvores e lobos, até mesmo muitas gerações após os primeiros homens, uma jovem aguará fêmea decidiu interceder junto ao rei em nome das árvores.

— Quanta injustiça demonstra, meu rei! Abranda seu coração com compaixão e permite que as árvores cresçam frondosas e esguias, como era antes do começo desses tempos! Veja, elas aprenderam sua lição. – disse a loba quando os primeiros raios do rei sol lamberam a terra.

Após ouvir seu lamento, mais uma vez, e como era de seu costume, o rei sol se enfureceu! Sem grandes deliberações, condenou a loba a nunca se apaixonar por um animal da mesma espécie. Um filho de homem seria seu parceiro e essa seria sua sentença.

— Amarás até a morte, como é prática da tua espécie, um filho de homem, para que assim nunca possa dizer aos seus descendentes, visto que não os terá, para que tenham pena das árvores! Seu antigo ascendente, que cravou em todas as gerações depois dele o hábito de andar quando me ausento já devia ter sido punido. Como antes não o fiz, por afeição a essa terra onde meu brilho é mais puro e quente, faço agora contigo! – disse o rei sol.

A loba, criatura sábia e conhecedora de seu papel no mundo, acatou sem muitos retruques ao que o seu rei mais poderoso ordenara. Em uma de suas andanças noturnas, viu luz no meio da mata. Um fogo incerto, mas contido, ardia em meio às árvores dali, fazendo com que lindas criaturas das sombras dançassem em torno da linda melodia que o bruxulear da fogueira soltava por entre as árvores tortuosas do cerrado. Todos dançavam. Tanto os filhos dos homens que haviam acendido o fogo na noite escura, quanto as árvores através de suas sombras. Curiosa, mas ainda tímida, a loba espiou por entre alguns galhos. Um filho de homem, de olhos negros como a escuridão da toca em noite sem lua, balançava os cabelos vermelhos em torno no fogo. Por um segundo o filho de homem trocou um olhar com a loba e então ela soube: eis que havia conhecido seu parceiro da vida toda.

 O homem foi embora para longe, pois certo que era de outras bandas, e a aguará ficou ali, lamentando sua sorte. Numa noite clara de luar, a rainha lua, que dominava o céu na ausência do sol, ouviu seu pranto.

— Mas por que choras, aguará?

— Eis que o sol me condenou, rainha! Meu amor se formou entre os filhos dos homens e estou condenada a viver para sempre sozinha...

— Ora, pois se acalme, que foi meu brilho que brilhou em seus olhos quando conheceu o filho dos homens que lhe era prometido. Não posso reverter sua maldição, mas, sim, posso abençoá-la. Ordeno que em todas as noites de lua nova, quando eu me alinho com o sol e a terra, seu amado possa se juntar à mata na forma de seu igual. Que assim seja e que a partir do próximo período de lua nova você e ele se encontrem todas as noites a fim de encher a terra com seus descendentes, que nascerão negros em homenagem à noite e crescerão vermelhos em reverência ao fogo do sol.

Na primeira lua nova que se seguiu, um homem, habitando uma terra distante, sentiu suas entranhas se contorcerem e uma linda pelagem macia e lisa nasceu em suas costas. As pernas longas se criaram e seus olhos passaram a enxergar o escuro. Agora transformado em aguará, ele sabia exatamente para onde deveria ir. Quando a viu, imediatamente a reconheceu: sua amada loba, a que seria mãe de seus descendentes, o esperava perto dos restos da fogueira que, ainda homem, ele acendeu quando a viu pela primeira vez.

Em todas as noites de lua nova depois disso, os lobos se encontravam e se amavam, abrigados de todo perigo embaixo da escuridão da noite. Os filhos dos primeiros homens, sabendo da benção da lua e da maldição do sol, descobriram que todos os sétimos filhos dos sétimos filhos de homem do cerrado teriam como destino se apaixonar por uma aguará fêmea e testemunhar a injustiça do sol com as árvores dali.

    

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