Solstício de inverno

by - agosto 09, 2021



As folhas caídas coloriam o chão com um crepúsculo de tons alaranjados, desenhando ondas nos cantos das passarelas do parque. Era um entardecer ensolarado e frio, e os sons surdos de saltos batendo contra o cimento pareciam mais altos a cada instante. Quando estava há alguns metros de mim, apertou o passo. Levantei-me do banco e nos abraçamos brevemente. Sempre prática, ela se sentou dizendo:

– Me desculpe a demora. Vim assim que pude.

– Não se preocupe.

– O que houve? Como você está?

Sentindo-me cansado e fracassado, com os olhos fixos em meus pés,  murmurei:

– Estou acabado, Bri.

Não tive coragem de encará-la mas pude sentir que segurou uma lágrima. Sem saber direito o que dizer,  ela colocou a mão esquerda sobre as minhas e apertou-as como fazem os grandes amigos e antigos amantes.

– Eu não tenho para onde ir. – falei tão baixo e envergonhado que praticamente não ouvi minha própria voz.

Bri, sempre pragmática e rápida de raciocínio, respondeu tirando as chaves da pequena bolsa que carregava.

– Leve suas coisas para meu apartamento. Tem pão, queijo e vinho na cozinha.

– Bri…

– Nem mais uma palavra. Eu chego por volta das oito.

Abaixou-se, decidida, e me deu um beijo no rosto. Tinha tanto afeto em seus lábios, que até fechei os olhos. Só levantei a cabeça quando ela já estava uns metros afastada. Seu andar acelerado e elegante combinava perfeitamente com o casaco clássico e o cachecol de lã. Era linda.

Andei pelas ruas parecendo sem rumo, embora soubesse exatamente para onde estava indo. Ao chegar ao endereço de Bri, encontrei o elevador quebrado, como de costume. Confesso, sem orgulho, quase ter desistido dos dezesseis lances de escada que separavam o térreo, onde eu estava, do oitavo andar,  meu destino.

Com a respiração curta, hiperventilando, abri a porta e o cheiro inconfundível do perfume de Bri me abraçou por longos segundos. Perambulei pelos cômodos, me deixando parar em frente à janela. Vi ao longe a torre. Por um lampejo tive vontade de subí-la e deixar meu corpo cair dela, sem despedidas, sem demoras, sem ameaças. Apenas a queda livre. Como todo parisiense, eu não a visitava desde os seis anos de idade. Lembro-me de meu pai me levando a contragosto, quase desistindo da caminhada e dos dois bondes que nos levariam até la. Mas diante da insistência de minha mãe, acabou cedendo. Me senti incrivelmente pequeno e sozinho ao vê-la de baixo. Exatamente como me sentia agora.

Fui até a cozinha em busca do vinho prometido por minha anfitriã. Meu estômago não estava para sólidos. Não me lembro quanto bebi, mas nunca vou me esquecer da réstia de luz entrando pelas cortinas denunciando as primeiras sombras da noite. Deitei-me numa poltrona da sala e deixei que os sonhos me levassem daquela realidade.

O cheiro de café e pão fresco incendiava a sala. Ouvi barulhos na cozinha, que se confundiram com meu estômago resmungando. Levantei levemente a cabeça e uma enxaqueca incomoda me trouxe de volta à vida. Sorri ao ver um cobertor sobre mim. Bri era durona, mas não conseguia esconder o coração enorme.

– O cheiro de uma vida equilibrada: café e pão, frescos.

– E você lá sabe o que é uma vida equilibrada, Léon?

Rimos juntos enquanto ela me passava uma xícara fumegante.

– Este outono vai ser bonito, a julgar pelo amarelado das folhas. – disse, tentando amenizar a conversa que eu pressentia em seguida.

– Minha estação preferida.

– Bri, prometo que não vai ser muito tempo.

– Preferia que não prometesse. – ela olhou para o café e desenhou aleatoriamente com a mão na toalha da mesa, meio sem graça pela sinceridade.

Segurei sua mão e, sem saber ao certo o que dizer, deixei sair:

– Será que um dia você vai me perdoar?

– Essa não é a pergunta certa. O correto seria: será que um dia eu vou te esquecer?

Ela se levantou, deu a volta na pequena mesa que nos servia na varanda, sentou-se em meu colo, os cabelos ruivos e longos balançando contra o vento, e disse:

– Enquanto estiver aqui, me ajude a fingir que você nunca foi embora.

Ergui o rosto segurando-lhe os braços. Ela se inclinou e nos beijamos. Seus lábios macios, seu cheiro de lavanda, seu corpo quente me oferecendo um prazer que há muito tempo eu não me achava merecedor. Fizemos amor nas horas seguintes. Não esse sexo que se vê em romances de banca. Foi intenso, quase bruto. Dois corpos se buscando, cada um querendo aplacar a solidão que, mesmo a dois, ainda sentiam. Uma dança elegantemente arrogante entre amantes que se perderam.

No fim da tarde, convidei-a a um passeio. Caminhamos pelas vielas da nossa Paris, de mãos dadas, sorrindo e lembrando dos tempos em que tudo eram promessas de uma vida melhor, promessas nas quais nossa inocência juvenil acreditava com o furor de uma religião.

Sentamos em um café, mas rebeldes como sempre fomos, bebíamos apenas água. Ela olhou em volta e eu pude vê-la observar uma mãe sorrindo para uma criança em seu colo. Ela me encarou de frente, prática, direta.

– Não se preocupe. É algo bem resolvido pra mim. Mesmo que tivéssemos tido aquele filho não seria como uma vida normal. Não poderia formar uma família com alguém que está sempre olhando pra trás.

– Eu sei.

Ela sorriu, mantendo o olhar fixo em mim. Me senti despido por sua força, sua determinação.

– Venha, Léon. Vamos para casa…

Levantou, me convidando com as mãos. Me viu sair da cadeira exausto e se aninhou em meus braços por alguns segundos, confortando-me.

A energia no prédio de Bri sempre oscilava. Chegamos no escuro, tateando pelas escadas e adivinhando o buraco da fechadura. A sala do apartamento estava banhada em uma luz fosca que vinha da rua, de longe. Seu corpo nu contra a pouca claridade e seus cabelos deslizando pelas costas, me encheram de um desejo quase doloroso de resistir a esse ardor que sempre houve entre nós. Eu não a amava, nunca a amaria. Mas sabia que ela só se entregava por ainda nutrir o amor que tivemos na adolescência.

Toquei-lhe a espinha e senti sua pele estremecer. Beijei-lhe com mais ternura do que nunca. Senti suas mãos abrirem todos os meus botões. Sentou-me na poltrona e ajoelhou-se em frente a mim. Delicadamente tirou minhas calças. Sua boca me percorreu sem medo, sem hesitação. Senti seus lábios úmidos e quentes, sugando-me com firmeza e desejo. Morri levemente por alguns segundos infinitos, voltando à vida logo em seguida. Deitada a minha frente, ela deixou as pernas entreabertas convidando-me a saciá-la. A cada investida minha, ela arfava. Seus gemidos roucos e seu corpo branco curvado sob o meu, me mostravam o caminho exato de seu prazer mais intenso.

Passamos o outono todo entre passeios e tardes de desejo. Nos dias em que ela saía para trabalhar, eu cuidava de meus assuntos. No solstício de inverno, quando os ventos já denunciavam as temperaturas baixas e as árvores estavam totalmente nuas, despedi-me dela como da última vez. No meio da noite, beijei sua testa e afaguei seu rosto. Prometi para mim mesmo que nunca mais voltaria a vê-la. Ela não merecia um meio amor, uma meia vida. Ela não merecia nada menos que tudo.




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