Encantado

by - agosto 09, 2021

 

O sol se derramava em milhares de tons alaranjados naquele fim de tarde de Abril. As pessoas passavam apressadas em frente à pequena loja de consertos do Sr. Eurípedes. De dentro, ele apreciava o céu e se perguntava por que na juventude todos tem tanta pressa. Era um homem baixo, corpulento, de bochechas rosadas e óculos com lentes grossos. Desde muito cedo mostrou um dom para a música e na adolescência elegeu o violino como seu instrumento, muito embora pudesse tocar com maestria qualquer coisa que tivesse cordas. Tímido, se negou à tentar entrar para a orquestra de São Paulo e decidiu, aos vinte e poucos anos, abrir sua própria luthieria. Sr. Eurípedes fabricava violinos encantados e consertava com carinho e atenção os que precisassem de algum cuidado. Não se casou, não teve filhos e quando seu pai se foi, anos depois de sua mãe, ficou sozinho no mundo. Sua loja era pequena para quem olhava de fora, mas quando se entrava nela parecia ter três vezes o tamanho. Lá dentro os violinos tinham vida e podia-se ver os instrumentos disputando qual tinha o melhor som, se revezando ao tocar essa ou aquela canção sem nenhum violinista a manuseá-los.
Certo dia, apareceu por lá um violinista famoso, o que não era raro pois Sr. Eurípedes era também muito conhecido. O homem era alto, com bigodes espessos e usava um terno caro. Seu ar soberbo fez com que os violinos se escondessem com medo de serem comprados por ele.
- Bom dia, o senhor deve ser Eurípedes, certo? - seu jeito ensebado era um tanto intimidador.
- Bom dia! Sim, sou eu mesmo! E o senhor é o famoso Klaus Furstenberg, o violonista! Seja muito bem vindo! - Sr. Euripedes sorria, como era seu costume sempre, e estava animado com a presença de alguém tão importante. - Em que posso ajudá-lo?
- Que bom que sabe quem eu sou. Detesto ter que me apresentar. - o homem ensaiava um sorriso, mas não convencia. - Dizem que sua loja é encantada.
- Ah... As pessoas exageram... Eu só faço as coisas com capricho. - Sr. Euripedes estava com os olhinhos apertados num sorriso satisfeito.
- Muito bem. Eu quero fazer uma encomenda. - Klaus estava sério agora.
- Uma encomenda! Ah, que maravilha! Vai ser uma honra fazer-lhe um violino! - o luthier não se cabia em si.
- Trata-se de uma encomenda especial. E exigirá um tanto de... Magia. - o violinista o desafiava.
- Especial? - Sr. Eurípedes estava intrigado.
- Quero um violino que toque, de forma mágica, os louvores da minha igreja.
- Louvores! Eu adoro louvores! São músicas adoráveis...
Klaus fez um gesto brusco com as mãos fazendo com que Sr. Euripedes se calasse.
- Minha religião é especial. Eu mesma a criei e quero que meus louvores toquem o coração das pessoas. O senhor tem duas semanas para me entregar o violino mágico e por seu trabalho lhe pagarei cem mil marcos. Estamos de acordo?
- Ora, Sr. Klaus, claro que sim! Mas, cem mil marcos é muito dinheiro por um violino. Eu posso fazer por...
- Cem mil, sem negociações.
- Um violino tão especial eu poderia fazer até se não me pagasse...
- Eu insisto. Cem mil em duas semanas.
Envergonhado e um pouco assustado, Sr. Eurípedes consentiu, mas fez uma única exigência.
- Se assim o senhor deseja, assim sera. Porém, gostaria de eu mesmo dar um nome ao violino.
- Que seja. - disse o violinista, sem dar muita importância ao assunto.
Quando o homem saiu, os violinos foram aos poucos voltando para a sala, com olhares assustados e tomando cuidado para não soltar uma única nota.
- Meus caros, temos muito trabalho a fazer! - Sr. Eurípedes olhava fixamente para a porta, com uma expressão de cuidado no rosto.
Nas semanas que se seguiram, o luthier e seus violinos encantados trabalharam até tarde, todas as noites. E recomeçavam o trabalho logo ao alvorecer. Na pequena oficina nos fundos da loja, Sr. Euripedes cortava, entornava, lixava e envernizava o que seria o violino mais especial do mundo.
Nos últimos sete dias ele se dedicou exclusivamente ao arco, produzindo com perfeição a peça. Na última noite de trabalho, os violinos se reuniram para fazer-lhe uma pergunta.
- Sr., o senhor sabe que este homem, Klaus, não deseja fazer coisas boas com esse violino. Por que aceitou sua oferta? - eles estavam preocupados.
Calmamente, com o rosto sereno, o velho respondeu:
- Bem, se eu não aceitasse, alguém aceitaria. Então, prefiro que eu o faça. Assim posso colocar nele alguma magia específica para que não se torne um instrumento tão perigoso.
- E esta magia especifica está no arco, senhor? - perguntou um dos violinos, que estava mais ao fundo.
- Exatamente! - o homem sorriu, satisfeito. - Voltemos ao trabalho, que amanhã será o dia de entregarmos a peça ao cliente!
Eles passaram aquela ultima noite trabalhando e quando o sol despontava, fazendo com que um sereno delicado baixasse nas ruas, Klaus Furstenberg batia na porta da loja.
- Bom dia, Sr. Klaus! Seja bem...
- Está pronto? - o violinista estava com pressa.
-Sim, sim, está pronto. - disse o luthier, apressando-se em trazer o violino.
- Muito bem! - o violinista parecia querer testar o produto.
- Sr. Klaus, não poderá tocá-lo aqui, infelizmente. Mas garanto que ele está perfeito.
- Ora, por que não posso experimentá-lo aqui mesmo?
- Veja bem, senhor. Aqui tenho outros muitos violinos, que nem se quer chegam aos pés deste. Se eles ouvirem seu som focarão tão deprimidos que não conseguirei mais vende-los.
Contrariado, Klaus aceitou, guardando o instrumento.
- Muito bem. Então, aqui está o pagamento. - uma maleta enorme fora colocada sobre a mesa.
- Sr. Klaus, guarde seu dinheiro, não será necessário pagar. Este instrumento me deixará tão famoso que serei mais rico que o homem mais rico com tantos pedidos que irei receber.
Mais uma vez contrariado, o homem assentiu.
- Então, está bem. Nos vemos em breve, sr. Eurípedes. - ele ja estava se encaminhando para a porta.
- Sr. Klaus, não quer saber o nome do violino? - sr. Euripedes estava calmo.
- Sim... - disse Klaus sem interesse.
- Compaixão. Seu nome é Compaixão. Ah, há mais um detalhe: o arco deve ser manuseado com cuidado e apenas em dias que o senhor se sentir genuinamente feliz. Se tocar o violino com outro arco ele não emitirá som, se tocar o violino em um dia em que não esteja feliz, ele não emitirá som.
- Ora, mas... Você me enganou?
- Sr Klaus, uma magia tão especial e delicada tem seu preço.
O homem saiu da loja enfurecido.

Alguns anos mais tarde, sr. Eurípedes soube através de um viajante que um famoso violinista havia deixado as orquestras e estava viajando o mundo tocando seu violino mágico, de graça, em todas as praças. O violinista desejava que todos fossem tão felizes quanto ele e dizia que o som de seu violino inspirava a compaixão em todos os seres humanos, fazendo-os entender a verdadeira felicidade.

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