Moto-contínuo

by - agosto 09, 2021

 

O vento castigava os ramos das árvores e a chuva encharcava os canteiros. Um aroma ocre de terra molhada tomava conta do ar. Ao longe, além da cerca que delimitava o terreno do pequeno sítio que fora herança do meu marido, o céu dançava ao som de raios e relâmpagos, num espetáculo aterrorizante de luz e escuridão. Eu lutava contra o frio e a baixa visibilidade a cada passo, mas mantinha o firme propósito de chegar até o galpão, que ficava há apenas trinta metros da casa. Abri a porta e o vento a empurrou com tanta força que nem sequer pensei em tentar fecha-la.

Lá estava minha máquina, minha criação. Coberta com lonas, exatamente como a deixei na noite anterior. Olhando para ela pelo clarão dos relâmpagos, senti um frio na espinha quando vi que uma pequena lâmpada estava acesa, embora todos os fios estivessem desconectados de qualquer fonte de energia. Congelei por um instante eterno antes de tomar coragem de descobri-la e verificar o que estava acontecendo. Imóvel sobre a mesa em que repousava, minha máquina emitia uma fraca e bruxuleante luz de seu interior. Era como uma vela acesa dentro de seu peito. Observei em volta dela e logo vi um fio que se esticava até um ponto na escuridão do galpão. Levantei o lampião que segurava e senti um frio na espinha quando vi, encolhido em um canto, um menino.

Assustado, ele se levantou, largou o fio que estava em sua mão e me olhou com tamanho pavor que me dei conta de que eu deveria estar com um semblante terrível. Relaxei e tentei sorrir, mas neste momento um golpe de ar apagou o lampião e ficamos na mais completa escuridão. Senti um vulto passar por mim e quando olhei para porta vi que o menino corria como uma bala, numa velocidade quase inimaginável até mesmo para um adulto. Em poucos segundos ele desapareceu na noite, deixando para trás apenas uma pequena luz acesa dentro da minha querida Olga.

Olga era o projeto da minha vida. Havia me dedicado inteiramente a cada mísero pedaço de sua estrutura. Construí com minhas próprias mãos todos os seus detalhes, inventei a maioria de seus sistemas. Muitos a chamariam de autômato, mas eu buscava uma maquina de movimento perpétuo. Uma maquina que usasse toda a energia gerada por seu próprio movimento para manter-se em funcionamento para sempre. Um moto-contínuo.

Desde a visita daquele menino estranho, Olga apresentava sinais de energia constante, sem estar ligada a nenhuma fonte. Eu estudava novamente cada detalhe de seu sistema, mas não conseguia encontrar o que havia sido alterado nela para atingir aquele resultado. Minha companheira de lata agora tinha um sopro de vida e eu não fazia a mais vaga ideia de como isso era possível.

Muitos e longos meses se passaram enquanto eu tentava descobrir o que aconteceu de fato naquela noite chuvosa. Passei a dedicar algumas orações pedindo que aquele menino voltasse, mesmo que só em meus sonhos, e me ensinasse tudo o que sabia. Meses se transformaram em anos, e anos, em décadas. A luz de Olga permanecia acesa, mas eu não conseguia nenhum outro avanço significativo.

A guerra veio assombrando, principalmente, a vida dos solitários, como eu. Sempre apareciam na propriedade soldados se achando acima do bem e do mal, exigindo alimentos, abrigo e insumos pra viagem. Eu dava-lhes tudo que queriam numa tentativa desesperada de mantê-los longe do galpão e de Olga. Com os conflitos se estendendo por anos, resolvi levá-la para o porão, onde ficaria melhor escondida. Foi mais ou menos nessa época que apareceu na propriedade um pelotão, liderado por um capitão que, entre sorrisos ensebados e muita brilhantina, exibia um olhar sem brilho, como um buraco negro de ódio e desejo de vingança.

O capitão chegou a cavalo, embora a maioria da tropa estivesse a pé, e logo montou acampamento no galpão. Alojou seus homens e decidiu que ele ficaria em um dos quartos da casa. Eu, que há anos não recebia visitas, ficaria em um sofá e serviria a eles tudo o que precisassem. Por dias, foi minha obrigação lavar, cozinhar e servir um pelotão de nove homens famintos e mal educados. Com medo de que encontrassem Olga, fiz tudo o que desejavam.

Um dia, porém, enquanto estendia no varal alguns lençóis usados pelo capitão, vi que alguns homens brincavam, ao longe, com um menino muito pálido. Fui na direção deles. Um calafrio gélido percorreu minha espinha e uma ânsia intensa subiu por minha garganta. Fechei os punhos, cravando as unhas na palma da mão, na tentativa de conter os nervos.  O menino que tantos anos antes entrara no galpão estava de volta. O mesmo olhar de pavor tomava conta de seu rosto. Hesitante, pedi que os homens o deixassem em paz e, conduzindo-o até a casa, ofereci-lhe algo para comer.

Ele não dizia uma única palavra. Não comia nada. Se mantinha sentado em uma cadeira e eu tive quase certeza de que não o vira piscar uma única vez. Com muito jeito, perguntei-lhe se ele se lembrava de mim e, com um aceno de cabeça, ele respondeu que sim. Perguntei se ele voltara para encontrar Olga e mais uma vez ele acenou positivamente. Minha ultima pergunta, porem, não obteve resposta: como não havia envelhecido um só dia desde que o encontrara décadas antes?

Naquela noite, acomodei o garoto no sofá ao meu lado e, quando todos estavam dormindo, levei-o até Olga. Estava sem me dedicar a ela há semanas e senti um enorme alívio ao vê-la repousando exatamente como havia deixado. O menino se aproximou dela, tocou seus dedos e, de súbito, todo o corpo de Olga se acendeu. A pequena luz que há anos permanecia acesa em seu peito, agora irradiava por todo o seu corpo. Com medo de que a claridade pudesse chamar a atenção dos homens que montavam guarda, cobri-os com uma lona e saí do porão.

Não sei como adormeci, mas fui acordada pelo capitão, sentada junto à porta do porão. Ao me ver ali, ele ficou curioso para saber o que eu escondia lá embaixo e, me empurrando com força, abriu caminho pela escada. Três homens precisaram me segurar para que eu não me jogasse em cima dele. Mas minha objeção foi inútil. Ele desceu as escadas e, segundos depois, ordenou que eu fosse presa.

Nunca soube o que houve com Olga ou com o menino. Fui levada à prisão e, de lá, para um hospital onde, já de cabelos brancos, encontrei uma solidão que me corroía a alma. No dia em que o homem que se dizia meu advogado trouxe o jornal, pude ver mais uma vez o menino e soube, naquele mesmo instante, que ele vinha me buscar para acabarmos nosso trabalho com Olga. Levantei-me e segui-o pela janela. Me precipitei pela janela alta, numa noite de chuva e relâmpago, como no dia em que nos vimos pela primeira vez. Nenhum caco de vidro me machucou, nem a queda quebrou qualquer um dos meus ossos. Caminhei com ele pela escuridão em busca de Olga. Pela primeira vez, em anos, eu tinha as duas companhias que mais desejava.

No jornal, que o advogado deixou sobre a mesa, a seguinte manchete estampava a primeira página: “Mulher mantinha cadáver de filha no porão de sua casa há mais de vinte anos – autoridades desconfiam que ela assassinou a menina após a morte do outro filho no lago em sua propriedade.”

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