Clara

by - agosto 09, 2021

 

Clara era uma dessas meninas cheias de ideias. Vivia com a cara enterrada em livros que contavam histórias melosas ou assustadoras. Nada de útil, diga-se. Não, Clara definitivamente não era do tipo que lia manuais ou livros de gramática. Só gostava dessas leituras bobas, que não acrescentam nada de útil na vida das pessoas. Clara era uma dessas meninas que enaltece a cultura, a arte. Ora... Se arte fosse importante não teria tanto artista morrendo de fome. Esse é um fato que não se pode negar. Outra realidade inegável é que quem vive com a cabeça no mundo da lua acaba dando em nada na vida. Esse é o futuro de Clara, se quer saber minha opinião.

Certa vez, ela estava no caixa da mercearia do pai. Não tinha mais ninguém lá e Clara estava absorvida lendo um livro muito velho. Até traça devia ter naquele tijolo de poeira. Parei na frente dela e tive que pigarrear pra ela me notar. Fechou o livro e sorriu pra mim. 

- Tudo certo, senhor Dollaway?

Só de ouvir a voz dela eu queria revirar os olhos. Mas me limitei a sorrir. 

- O que você está lendo aí?, perguntei, apontando para o tal tijolo. 

- Ah! É Moby Dick! - ela respondeu toda animada. Segurei novamente o desejo de revirar os olhos. Criaturinha insolente essa Clara. - O senhor já leu?

Respirei fundo para não sair da loja após uma pergunta tão cretina como essa. 

- Não. Eu não perco meu tempo com frivolidades. - me limitei a responder. 

- Certo... São 17 dólares, senhor Dollaway.

 Paguei e saí anotando mentalmente que precisava advertir o pai de Clara sobre deixa-la sozinha, com livros, tomando conta da mercearia. 

Clara passa em frente da minha casa todos os dias, acho que ainda não comentei esse fato irritante. Somos vizinhos. Todo santo dia ela passa pela minha porta. Sempre acena para minha mãe quando ela esta sentada na varanda. Minha mãe é uma mulher adorável! Extremamente educada, elegante. Por isso, ela sempre acena de volta. 

- Não seja tão duro com ela, querido!, ela diz quando eu reclamo de Clara. 

Mas semana passada mamãe passou dos limites. Convidou Clara para tomar chá conosco. Eu queria adverti-la que esse tipo de gente só causa problemas e que, no mínimo, ela faria uma lambança na sala de jantar. Mas não tive tempo. Clara já estava sentada à mesa quando me dei conta. 

- Você gosta de camomila, Clara?

A moleca aquiesceu. 

- Ora! O que você carrega aí? - minha mãe percebeu que ela trazia o tijolo Moby não-sei-o-que debaixo do braço.

- É só um livro que estou lendo. - ela respondeu, bebendo da xícara. 

- Sabe, Clara, meninas inteligentes não são bem vistas pelas famílias de bem. Entende? Você não devia ficar o tempo todo enfiada em livros. Tem um cabelo tão bonito... Podia aproveitar o tempo para se arrumar mais.

Agora que mamãe comentou, percebo que Clara é uma menina muito bonita. Não tem mais de dez anos, mas já tem as pernas longas e o olhar malicioso. As meninas são assim, ardilosas. E veja você que algumas horas depois da visita de Clara, eu acordei com uns homens batendo à porta. 

- O senhor viu Clara, sua vizinha? A menininha? Os pais nos chamaram. Ela não voltou para casa hoje...  - o policial carregava um bloco de anotações e parecia aflito. 

Essas meninas de livros só trazem problemas. Desaparecida. Tinha que ser Clara! Eu disse a ele que não tinha visto a moleca, você sabe, se soubessem que mamãe a chamou para tomar chá iam começar a nos acusar de coisas terríveis. E mamãe não pode passar nervoso, ela tem uma alma muito delicada. 

- Essa menina vive no mundo da lua. Não me assustaria se ela fosse atropelada ou algo assim... Nunca presta atenção em nada... Também pode ter irritado alguém, você sabe. Ela tem uma arrogância que, olha, tira a gente do sério. O senhor como homem deve me entender. As meninas são astutas. - o policial não respondeu. 

- Senhor Dollaway, certo?

Afirmei com a cabeça. 

- O senhor por acaso já foi preso, senhor Dollaway? -  já vinha ele falando daquela bobagem. 

- Eu não. Minha mãe, coitadinha, certa vez foi confundida com um desajustado que roubou coisas o mercado. Passou a noite na cadeia. Quase morreu de tristeza. - eu respondi, irritado com ele. Vá procurar aquela doida e me deixe em paz, oras! 

- E quando foi esse incidente, senhor Dallaway?

Ele sabia bem que foi ano passado, mas começou a se fazer de sonso. Clara devia te-lo encantado. Aquela criança ferina! Não respondi a pergunta.

- Senhor Dallaway, posso entrar pra dar uma olhada? Às vezes a menina se escondeu em algum canto aí dentro.

- Não tem como se esconder aqui. E mamãe está dormindo agora, não quero incomodá-la.

- Certo... Obrigado por cooperar.

O homem saiu e eu fiquei parado até que ele chegasse na calçada. Voltei para dentro e mamãe estava sentada na sala de jantar.

- Desculpe ter te acordado, mamãe. 

- Não tem problema, querido. – ela disse muito calma. – Precisamos fazer nosso trabalho logo, pelo jeito. Já sentiram falta da Clarinha. – eu concordei. – Leve um lanche para ela e em seguida começaremos a ensiná-la boas maneiras, certo? – ela se virou e subiu as escadas.

Preparei o lanche e abri a porta que dava acesso ao porão. Desci as escadas vagarosamente e acendi a lâmpada que pendia do teto. Clara estava sentada no canto, com aquela cara de coitada, se fazendo de vítima.

- Coma! Logo minha mãe vai vir falar com você. Sabe, você deveria agradecer por minha mãe ser tão paciente com você, sua porca. Se ela não puder te corrigir, ninguém pode e você vai acabar na sarjeta que é o lugar das porcas imundas como você... 

- Sua mãe morreu antes de eu nascer! Meu pai me disse! Você é só um doido que se veste de mulher! Me deixe sair daqui!

A insolência da moleca não tinha fim. Calei-lhe a boca e subi. O programa preferido de mamãe já estava começando e eu tinha que estar com ela.

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