A vista das lembranças

by - agosto 09, 2021




Ele me disse um dia que relacionamentos duradouros são baseados em mentiras. Ainda se passariam dois invernos até que eu compreendesse suas palavras. Talvez por isso, a nossa seja uma história tão curta. Só houve verdades entre nós.

Em 1990, se a memória não me falha ou engana, vivenciei a aflição mais intensa que uma criança de nove anos pode sentir. A lembrança que tenho é de um menino baixinho, metido a esperto, de bicicleta, na porta da minha casa, rindo por eu estar usando chinelo, meias de balé e polainas. Uma estação antes disso, um acidente causado por descuido e prepotência, tinha levado minha mãe. Foi num dia de céu sem chuva, com muitas nuvens brancas como algodão. Lembro de ter pensado que ela sorria enquanto procurava formas nas nuvens de algodão, o que sempre fazia quando tinha algum problema. Meses depois, em meio a um silêncio cheio de gritos, aprendi a aquietar com palavras a lembrança dolorosa da saudade. Comecei a escrever cartas, que nunca seriam enviadas, para ele. No meu sonho infantil, ele era alto, educado e romântico. Na vida real, como ele mesmo diria anos depois, era um menino deselegante.

Morávamos em uma cidade pequena, onde bicicletas e bolas faziam parte da formação de uma criança. Mas era na escola, escondida entre medo e timidez, que eu o observava e guardava em segredo aquela sensação terna que substituía a ferida aberta que aqueles dias ainda cinzas me traziam. Anos depois, percebi que o oceano do tempo sempre nos devolve as lembranças que tentamos enterrar. Foram mais de vinte anos longe desses dias, que voltamos a nos encontrar. E a ternura de criança me voltou, tão intensa e arrebatadora, como naquele dia de meias de balé e polainas.

Talvez o acaso, ou seu parente elegante, o destino, tenha guardado em minha memória, sempre fraca e misteriosa, a lembrança dessa história. Uma lembrança que me acompanharia até meus dias finais, onde agradada pelo sabor de um chá de mato, daqueles que a gente faz com plantas do quintal, decido dividir com Bea, a menininha de olhos grandes e cabelos volumosos que insiste em me chamar de vó apesar de meus relutantes pedidos por Anna. “Só Anna, querida”, digo, acariciando-lhe o queixo.

Bea foi uma criança incrível. Sempre a achei um pouco parecida com as personagens de Harry Potter, que misturam um tanto de verdade com um tanto de mentirinha carinhosa. Nós a criamos livre, pintando quadros nas paredes da casa, fazendo teatros no jardim para a vizinhança. O avô ficou satisfeito e orgulhoso quando a adolescente que ela foi decidiu cursar medicina. Eu, previa a frustração que realmente veio anos depois, quando terminou a faculdade e voltou para nosso sítio, cansada e perdida, como toda pessoa interessante é por volta dos trinta. “Esta sempre será a sua casa”, eu lhe disse na recepção, e ela fez aquela expressão de muxoxo, de quem agradece pelo carinho, mas não se sente mais parte do lugar.

Algumas noites depois de sua volta, Bea, agitada e ansiosa por encontrar seu lugar no mundo, me pergunta como conheci seu avô, talvez na tentativa de encontrar a si própria em uma história alheia. A simples lembrança daqueles dias de juventude me traz lágrimas aos olhos e calor ao coração.

 

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