Era tudo possível

by - agosto 09, 2021


Corri em direção ao ponto e, num impulso, entrei no primeiro ônibus. Estava atrasada. Sempre acordo muito cedo, mas tenho a sensação de que não deveria dormir para dar conta de todos as responsabilidades. Já tinha ido à ioga, feito ovos pro café da manhã, tomado um banho e revisado a planilha da reunião. Já fazia quase três horas que havia levantado da cama, mas estava atrasada. No caminho, desejando que o tempo parasse e que eu pudesse chegar a tempo, mesmo em meio ao caos de todos o trânsito, repensei qual seriam meus argumentos para convencer o cliente de que minha estratégia traria melhor resultado. Como sempre, repensei isso de forma tranquila, dizendo para mim mesma que iria simpatizar com o cliente e que seríamos parceiros nessa jornada de livra-lo da cadeia. Mentalizei que iríamos conversar e, dentro do possível, até rir juntos. Àquela altura, mal sabia que faríamos muito mais.

Cheguei em cima da hora, mas ainda estavam reunidos na sala de café para esperar Ronald, meu sócio, mentor e chefe, que ligara avisando que se atrasaria. Entrei na sala tentando passar uma confiança que tinha deixado lá na rua, junto com meu atraso. 

– Dra. Sara, bom dia! – disse o tio do cliente, sr. Kober.

– Bom dia, sr. Kober. Espero que não estejam aguardando há muito tempo.

– De forma alguma. Acabamos de chegar.

Acanhado, sentado no sofá baixo, com os joelhos quase alcançando o peito, vi o homem que presumi ser o cliente. Levantando-se, ele disse:

– Bom dia, dra. É um prazer conhecê-la.

Era alto, tinha olhos azuis penetrantes e cabelo quase castanhos, não fosse por alguns fios muito louros que denunciavam sua ancestralidade alemã. Sorria de forma tímida e preocupada e me pareceu que se esforçava para manter a calma. Tive a sensação de que ele não dormia há meses.

– Bom dia, o sr. deve ser o sr. Hoyer.

– Pode me chamar de Ricardo.

Quando apertamos as mãos, a secretária avisou que Ronald já nos esperava na sala de reuniões. Assim que entramos, pedi que Ricardo me contasse exatamente o que aconteceu na manhã em que sua esposa falecera, um ano e meio antes. 

Entrei em casa chamando por Anna e meu coração me disse que algo estava errado. As luzes estavam apagadas, embora já fosse mais de oito da noite. Normalmente, nesse horário, eu a encontrava animada preparando o jantar. Fui até a cozinha e, percebendo que estava vazia, subi para procurá-la no quarto. Imaginei que podia ter se sentido mal devido à gravidez recente e que estivesse descansando. Fiquei muito apreensivo quando não a achei dormindo e comecei a ligar para o celular dela. Liguei a noite toda, mas ele estava desligado. Como não tínhamos muitos amigos próximos, com os quais ela poderia estar, liguei para todos e a resposta era mesma: ninguém a via há pelo menos dois dias. Esperei por ela a noite toda, já que o carro dela também não estava em casa. De manhã, apavorado e preocupado, chamei a polícia e comuniquei seu desaparecimento. Eles vieram e fizeram uma averiguação simples pela casa, dizendo que só poderiam dar entrada como pessoa desaparecida depois de 24 horas, e foram embora. Quando o prazo definido se cumpriu e eu ainda não tinha nenhuma notícia dela, fui até a delegacia e registrei a queixa de desaparecimento. Em menos de 10 minutos minha casa estava cheia de detetives e peritos buscando pistas do que poderia ter acontecido com minha esposa. Até eles começarem a revirar a casa eu não tinha tido a ideia de descer até o porão. Anna jamais entrava lá sozinha, então não me ocorreu que ela estaria lá embaixo. Meu coração parou por um minuto quando um policial chamou o detetive dizendo que haviam encontrado minha mulher. Desci as escadas atrás dele e, mesmo tentando me segurar, desabei no chão ao ver seu corpo caído no chão úmido e frio, coberto de sangue. 

Não sei por que, mas a polícia me colocou imediatamente no topo da lista de suspeitos. No meu primeiro depoimento, me explicaram que o fato tinha todas as características de crime passional e como não haviam evidências de arrombamento, eu estaria entre os suspeitos. Não imaginei que eu precisaria de um advogado para aquele primeiro depoimento, pois imaginei que logo focariam em outra coisa, buscariam outras pistas, já que eu não fiz nada. Argumentei que a suspeita era ridícula: por que eu chamaria a polícia para encontrá-la em meu porão? Se eu a tivesse matado, não seria mais inteligente enterrá-la em algum lugar? Eles tomaram isso como uma espécie de confissão e, daí em diante, passaram a buscar provas para me incriminar e não para descobrir quem fez isso com minha esposa.

Quando ele acabou seu relato, minha pergunta soou como um insulto.

– Ricardo, você matou sua esposa?

Visivelmente abalado, seu semblante se transformou. Seu rosto ficou contraído com tamanho ódio em seu olhar. Bateu na mesa com os punhos cerrados e, fazendo as xícaras de café pularem, olhou-me profundamente nos olhos e respondeu:

– Eu amo minha esposa e meu filho. Não. Eu não os matei.

Após um segundo que me pareceu infinito senti meu corpo encher-se de apreensão e, se não tivesse muito autocontrole, teria rompido em lágrimas.

Respirei fundo e disse:

– Agora vamos à estratégia de sua defesa.

Expliquei detalhadamente todos os caminhos legais que acreditava serem os melhores para, se não conseguíssemos provar sua inocência, provarmos pelo menos que a polícia agiu de forma errônea e que  a investigação deveria ser reaberta.

Ele não abriu a boca nenhuma outra vez. Ouviu calado e atento a tudo e ao fim apenas olhou para o tio que o acompanhava. O sr. Kober era um homem não muito alto, de cabelos pretos e lisos e olhos que nos passavam uma serenidade que emanava dele com tanta naturalidade que ficava difícil não se sentir confortado em sua presença. Era dono da livraria onde Ricardo trabalhava e também era seu único álibi. Sr. Kober finalizou a reunião dizendo que a estratégia parecia eficiente e que, paralelo aos nossos esforços para manter o habeas corpus de Ricardo, ele havia contratado um detetive particular para tentar descobrir o que realmente aconteceu com Anna.

Passei a tarde absorta relendo o processo e anotando possíveis falhas na minha argumentação. Assustei quando o telefone tocou e, do outro lado da linha, ouvi a voz rouca e abafada de Ricardo me chamando para um encontro naquela tarde. Perguntei se havia alguma novidade, mas não obtive resposta.

– Se for possível, por favor, venha me encontrar. – disse ele. Combinamos o horário, o local e desligamos.

Achei-o na praia, sentado a beira mar, olhando ao longe, perdido em seus pensamentos. Vi um homem cansado, que parecia mais velho do que realmente era e senti um certo aconchego no peito, uma forma de paz trazida pela gratidão de não ter minha vida devastada e tirada de mim de forma tão cruel. Sentei-me e, sem me olhar, ele disse.

– Eu e Anna estávamos nos separando. Ela não tinha certeza se o filho que esperava era meu. Eu só ainda não entendo por que a polícia não colocou isso na investigação, já que todos os nossos amigos que  interrogados foram unânimes em dizer que nosso casamento ia mal. 

– Por que você não me contou isso na reunião, hoje pela manhã? 

– Não sabia se poderia confiar em você.

– E agora sabe?

– Agora, eu quero confiar em você.

– O detetive particular sabe disso? É isso que ele está investigando? Tentando descobrir quem era o, me desculpe, amante de sua esposa?

Ele olhou para os pés, desesperançoso e exausto, e disse quase num sussurro:

– Sim..

Segurei sua mão e a apertei com firmeza, como se quisesse dizer sem palavras que tudo ficaria bem. Ele levantou o tronco, olhou-me nos olhos e, sem pensar em nada, nos beijamos. Sem trocar uma única palavra, o acompanhei até o prédio em frente ao mar, entrei em seu apartamento e, com a urgência das almas perdidas e uma ansiedade que trazia a falta de juízo, fizemos amor até o cair da noite.

No dia seguinte, marcamos de encontrar o detetive em um café perto da livraria do sr. Kober. Fiquei um pouco inquieta com a presença do homem de olhar felino e nariz adunco. Chamava-se Egídyo e colocou-nos a par das últimas descobertas.

– Há alguns meses Anna havia se apaixonado por outro homem e estava decidida a pedir o divórcio. Descobri isso conversando com sua melhor amiga, que o sr. Hoyer deve conhecer muito bem, a srta. Clara. Bem, quando ela engravidou, havia a possibilidade do filho ser do marido e isso a deixou com medo de levar a separação a diante. Tenho motivos para acreditar que o homem por quem ela estava apaixonada é um policial e, por isso, essa história não consta na investigação da polícia. Na tentativa de protege-lo de qualquer acusação – já que o fato dela não ter se separado poderia configurar como um motivo para matá-la – esconderam este ‘detalhe’. Ainda não sei quem é ele, pois Anna nunca disse seu nome para sua confidente, mas estou trabalhando nisso. 

– Sr. Egídyo, temos somente duas semanas até o julgamento, por favor, se apresse.

– Sim, dra. Sara. Antes de irmos, porém, gostaria de pedir que fossem mais discretos caso decidam passar a tarde juntos novamente. Ontem, eu os vi na praia e depois no apartamento do sr. Hoyer. Vamos torcer para que o tal policial não tenha tido a mesma oportunidade.

Ele nos deixou, após um breve cumprimento, constrangidos e sem saber o que dizer.

As duas semanas que se seguiram foram de muito trabalho para mim, mas mesmo assim, eu e Ricardo nos encontrávamos quase todas as noites, compartilhando nosso tempo entre sexo e longas conversas, que cada dia mais nos aproximava do que pode ser chamado de casal. Não conseguia mais imaginar meus dias sem ele e, com o coração sempre aos pulos, desejava com todas as minhas forças que o detetive descobrisse logo quem era o amante de Anna e pudéssemos dar novo rumo às acusações. Parecíamos fugitivos do mundo, nos vendo sempre às escuras, evitando nossas casas e nos encontrando em hotéis de reputação e limpeza duvidosas. Nos rendíamos aos nossos corpos todas as noites, buscando um no outro um conforto para a solidão surda em que vivíamos. Às vezes, ele se perdia em seus pensamentos, ficando longos minutos com os olhos vidrados no nada, corroído por lembranças dolorosas. Na ingenuidade de todos os amantes, passei a acreditar que logo esses apagões iriam embora, que ele só precisava da minha companhia e amor para reencontrar-se.

No dia do julgamento, encontrei Ricardo e seu tio na porta do forum. Expliquei muito profissionalmente como seria a audiência e perguntei se tinham alguma novidade de Egídyo. Com a resposta negativa, entramos na corte e tomamos nossas posições. Racionalizando tudo, mantive a serenidade mesmo tendo o corpo do homem que eu amava tão próximo, a meio braço de distância, sentado na cadeira ao lado. A audiência começou e acusação e defesa colocaram seus pontos de vista. Já estava apreensiva sem nenhuma resposta de Egídyo durante tanto tempo e perdia a segurança de que poderia evitar a prisão de Ricardo apenas com o que tínhamos. No meio da minha apresentação, meu assistente levantou-se rapidamente após o sr. Kober dizer-lhe algo ao ouvido. Demorou para que ele voltasse e quando sentei, estava a ponto de mandá-lo embora. A oitiva das testemunhas de acusação já ia começar quando ele se aproximou dizendo que havia falado com o detetive e tinha novidades. Egídyo havia descoberto quem era o policial e tinha uma testemunha disposta a depor a favor de Ricardo. Pedi licença para me aproximar do juiz e disse que tínhamos novas provas que precisavam ser anexadas ao processo. A audiência foi adiada para o dia seguinte.

A testemunha era a ex-mulher do policial com quem Anna havia se envolvido e que alegava que ele era violento, tendo inclusive a agredido com uma faca em certa ocasião. Ela estava amedrontada em depor, mas se dizia tocada pela morte da mulher grávida e disposta a fazer-lhe justiça. Naquele momento tive certeza de que Ricardo seria absolvido e que poderia sonhar com um futuro ao lado dele.

As audiências que se seguiram foram apenas para reabrir o caso junto à polícia e libertar Ricardo de qualquer acusação. Agora, o caso seguiria outro curso. Várias provas foram encontradas com o amante de Anna e elas não deixavam dúvidas que ele havia cometido o crime. Meu coração estava em êxtase por imaginar que Ricardo agora seria libertado de seus tormentos e poderia ser, finalmente, meu.

Não nos víamos há quatro dias e ele também não retornava minhas ligações. Fui até a livraria, e seu tio também parecia preocupado. Naquela tarde quando voltei para o escritório, a secretária me entregou uma carta, sem remetente, que havia sido deixada na portaria do prédio por um mulher de rua. Sem muito entusiasmo e ainda com a cabeça no sumiço de Ricardo, abri a carta.

Sara,

Imagino que esteja me procurando e, se ainda sei ler pessoas, você está com aquele olhar preocupado de mulher apaixonada. Acalme-se. Eu estou perfeitamente bem. Não se sinta mal por não ter percebido que eu cairia fora na primeira oportunidade. Para usar um clichê: o problema não é você, sou eu.  

Achei que seria mais fácil me defender se você estivesse, digamos, emocionalmente envolvida com o caso e decidi me aproximar para garantir que seu trabalho fosse bem feito. Nosso romance não era uma realidade, infelizmente. Pelo menos, não da minha parte. Para mim, ele nunca passou de uma possibilidade. Era garantido por uma esperança parecida como a que temos ao apostar na loteria: já que existe a possibilidade de ganhar muito, investimos um pouco. 

Esta carta é um sinal inequívoco do meu grande apreço por você. Sinta-se lisonjeada. E também conforte-se sabendo que, se insistisse no relacionamento, o futuro poderia ser obscuro para um de nós. E receio que não seria pra mim.

A carta, em papel elegante e escrita à maquina – um detalhe que a deixava ainda mais cruel – caiu de minhas mãos, enquanto me apoiava na cadeira para não desmaiar. Era possível que ele houvesse matado a esposa, era possível que ele houvesse comprado o detetive particular, era possível que tivesse um caso com a melhor amiga da esposa. Eram tudo apenas possibilidades. 

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