Análise de "Frankenstein", de Mary Shelley

by - fevereiro 17, 2021

 
Li "Frankenstein" de Mary Shelley no fim de 2020 e já entrou para a minha lista de livros favoritos. Escrito há quase 200 anos, a mensagem do livro não poderia ser mais atual. Mary shelley é simplesmente ge-ni-al na construção da trama e na apresentação das referências filosóficas que aborda. Nessa resenha quero falar exatamente dessas referências.

Já aviso que podem existir alguns spoilers aqui!




CONTEXTO
Mary shelley teve a ideia do livro durante uma viagem de férias com seu marido Percy Shelley e ninguém menos que Lord Byron à Suiça, onde Byron propôs o desafio de cada um deles escrever um conto de terror para passar o tempo. Percy Shelley e Byron desistiram logo da empreitada, mas Mary, após ter um sonho, decidiu se dedicar à sua história. Alguns anos depois, incentivada pelo marido, nascia "Frankenstein - Ou o Prometeu moderno".

Mary viveu entre 1787 e 1851, portanto acompanhou o final do século XVIII até a metade do século XIX. Nesse período, a corrente Iluminista definia os rumos da ciência e da política e pregava que a humanidade se salvaria pela razão. Assim, o racionalismo imperava em todas as expressões culturais. O ser humano vivia um momento de crença em sua capacidade racional, onde tudo poderia ser explicado e conquistado pela ciência, negando o excesso de religiosidade e superstição que marcaram, do ponto de vista iluminista, a Idade Média. Mary Shelley vai questionar justamente a exaltação desse racionalismo.

O SUBTÍTULO
Vou começar minha análise pelo subtítulo da obra. Não é a toa que Mary escolheu "Frankenstein - ou o Prometeu moderno". O termo Promoteu se refere ao mito grego que conta a história de Prometeu que foi encarregado pelos deuses, junto a seu irmão, de criar todos os animais da Terra. É importante ressaltar que Prometeu não era um deus, portato devia submeter-se a eles. O irmão de Prometeu era responsável por criar os animais, equanto Prometeu supervisonaria a criação. Para cada animal, o irmão de Prometeu decidiu dar uma "vantagem", uma habilidade. Para o tigre deu garras, para o urso deu força, e assim por diante. Quando foi criar o homem, o irmão recorre a Prometeu dizendo que só sobrou barro para esculpir o último animal e que este estaria em desvantagem na natureza. Prometeu, então, tem a ideia de roubar o fogo dos deuses e dar ao homem para que ele pudesse se defender. Quando descobre a façanha, Zeus condena Prometeu pela desobediência, punindo-o com a tortura de prende-lo em uma rocha por 30 mil anos, durante os quais todos os dias, pela manhã, uma ave viria comer seu fígado, que se regeneraria durante a noite, par que pudesse ser novamente devorado no outro dia.

O mito de Prometeu tem muitos simbolos filosóficos. O fogo dos deuses simboliza o conhecimento e, assim, Prometeu é o responsável por dar aos homens a razão, igualando-os aos deuses. E é interessante perceber que Mary escolhe esse arquétipo para sua obra: um não-deus que dá aos homens o poder dos deuses.

Prometeu é visto como uma figura maliciosa, desafiadora. Ele desafia os deuses com sua malícia. Na psicanálise Prometeu é visto como a alegoria da puberdade, momento em que o ser humano toma consciência de si próprio e de suas potencialidades e do que ele quer e geralmente se revolta contra a figura do pai. E aqui é importante não se esquecer dessa escolha da autora: a revolta do guardião da humanidade contra os deuses.

Acho interessante mencionar aqui também que Prometeu aparece na Odisséia e é salvo de seu tormento por Ulisses, que estava - guarde muito bem esta informação - navegando de volta para a casa.

ENREDO
O livro começa contando a história de um jovem chamado Robert Walton que escreve cartas para sua irmã contando sobre sua aventura na tentativa de ser o primeiro homem a alcançar o polo norte. Em suas cartas, ele fala sobre seu desejo de ter fama e gloria, mas também diz se sentir muito sozinho, desejando ter um amigo para ouví-lo e guiá-lo. Ele junta uma tripulação para navegar até o polo norte. Em certo ponto da viagem, seu navio fica preso no gelo durante dias e eles começam a enfrentar a possibilidade da morte, visto que se não conseguirem navegar até um porto ficarão sem comida, água ou suprimentos. Desolado pela possibilidade de não conseguir seu intento, Walton vê vagando no gelo um trenó com um homem quase morto. Esse homem é o doutor Victor Frankenstein.
É importante perceber aqui, a referência à Odisséia. Um navegante, tentando voltar para casa, salva o "Prometeu moderno".

Perceba que o nome que dá título ao livro não é o nome do monstro, mas sim de seu criador.

A partir desse encontro, Victor Frankenstein vai contar sua história. A história de um médico que aprende a dar vida a matéria morta e cria um monstro, do qual ele vai fugir por toda sua vida, horrorizado com sua criação. Assim, Frankenstein se encaixaria naquela época no gênero terror, mas é um dos precursores da ficção científica.

E Mary escolhe começar mostrando sua infância oq ue é genial. Até o século XIX as crianças eram vistas como mini adultos, ou seja, um adulto que não era fisicamente forte. O conceito de infância de que precisamos instruí-las, contruir sua personalidade, dar carinho e amor às crianças era muito novo. Mary Shelley usa essa ideia brilhantemente em sua obra. Assim ela vai mostrar que Victor foi criado com muito amor, tanto de sua mãe como de seu pai, algo bastante incomum, visto que a criação dos filhos era tarefa exclusivamente materna. Porém, Victor tem um pai bastante amoroso e presente. Mary mostra que a criação amorosa de Victor vai ifluenciar em suas escolhas adultas. Apesar de Victor ter uma infância amorosa, ela mostra que em sua juventude ele se mostra arrogante, com desejos irrefreáveis de glória.

Em outro momento do livro, ela também mostra a "infância" do monstro. Uma escolha filosoficamente muito interessante. Quando o monstro encontra Victor ele conta sobre o fato de estar desnorteado, sem saber o que fazer. No início ele apenas sentia coisas físicas, fome, frio, calor. Em sua trajetória, Mary trata questões humanas sempre atuais, como preconceito, aparência em contraponto com a essência, amor, afeto. O monstro sempre busca a essênia das pessoas, susa virtudes, seus valores, seu afeto, mas ele é sempre julgado por sua aparência horrenda, o que o faz viver nas sombras. Ao escolher essa trajetória, Mary mostra como o médico era narcisista, sempre muito ligado às aparências, pois ele julga desde o início apenas a aparência do monstro.

O monstro aprende a falar, ler e escrever observando uma família pobre, à qual ele tem medo de se apresentar. Em certo ponto, o monstro encontra alguns livros na beira de um rio e a escolha desses livros é simplesmente genial. Mary poderia ter escolhido a Bíblia, mas ela escolhe dois grandes títulos da literatura. Um deles é "Paraíso perdido", de um poeta que influencia muito a obra de Shelley, que aborda a criação do homem. O segundo livro é "Os sofrimentos do jovem Werther", do Goethe, representante do romantismo alemão, cuja corrente filosófica faz uma crítica a exacerbação da razão e questiona o que realmente nos faz humanos. É nossa razão ou nossa capacidade de empatia, de amar? A partir desse momento, o monstro deixa de ser uma "criança" para entrar na puberdade. E aqui ele se torna o arquétipo do Prometeu e se revolta contra seu pai, seu criador. Então, ao mesmo tempo que Victor pode ser visto como o Prometeu por roubar um segredo dos deuses e dar vida à uma criatura morta, o monstro também vai ter as características psicanalíticas do arquétipo de Prometeu: o adolescente que ao tomar consciência de si e de suas potencialidades se revolta contra o pai. E aqui ele começa a perseguir Frankenstein, lhe impondo muitos sofrimentos. Mary consegue nos fazer sentir muita pena de Victor, assemelhando seu sofrimento ao castigo de Prometeu, mas também nos faz sentir muito ligados ao monstro, na medida que de muitas formas ele representa a humanidade em nós.

Mary Shelley consegue então trazer em uma única história a representação do conceito de "tragédia grega" que é basicamente a ideia de que mesmo que todos os personagens morram, o conflito continua, pois o conflito da história é inerente ao ser humano.

Mas Mary não fica apenas no arquétipo de Prometeu. Ela questiona as ideias iluministas de que a ciência vai salvar a humanidade, mostrando que a ciência também pode criar muitos sofrimentos. E aqui ela lembra do "mito do bom selvagem" de que o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe, questionando também essa ideia, fazendo um contraponto entre o criador e a criatura. De um lado Victor que sempre teve tudo: amor, dinheiro, estudo e se torna um homem que quer se igualar a Deus e de outro um monstro que em contato com a "humanidade" de seu criador se torna um assassino. Ao mesmo tepo que ela apresenta o mito do bom selvagem, ela o questiona.

Mary também antecipa alguns conceitos filosóficos que serão tratados a partir da criação da bomba atômita, um século depois do livro ser publicado. São conceitos que aparecem apenas após a criação de armas de desctruição em massa, tecnologia que traz muitas questões filosóficas. Outro conceito que ela antecipa é a ideia de que todas as escolhas do presente, a partir de agora, tem um peso sobre a existência ou não do futuro. Com a criação de armas que podem extinguir a vida na Terra, a filosofia começa a questionar que apesar da ciência poder gerar destruição, ela é nossa única chance de salvação. Mary Shelley apresenta esse conceito com mais de um século de antecedência.

CONCLUSÃO
"Frankestein" é uma obra complexa que além de entreter também nos faz pensar. Conhecer o contexto histórico, os conceitos filosóficos e os mitos que inspiraram Mary Shelley dá uma visão completamente diferente sobre o livro. Garimpei essas ideias e esses conceitos em vários lugares e primeiramente fiz um vídeo sobre eles. Como esse vídeo ficou muito longo, não pude subí-lo aqui e então resolvi escrever essa análise. Espero que tenha conseguido abordar todos os temas com o cuidado que eles merecem!

E aí, já leu Frankenstein? Me conta aqui nos comentários!



DICAS DE APROFUNDAMENTO:
Após ler "Frankenstein" recomendo assistir o filme "Prometeus", uma continuação da saga Alien! É um filme que aborda muitas questões filosóficas que aparecem no livro, com um roteiro genial! 


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