Girafa de Papel

by - fevereiro 22, 2021




    Não tinha nem doze anos quando aquela família elegante entrou pelo portãozinho simples que separava a casa da calçada onde a menina ficava a maior parte do tempo. A mulher bonita, com cabelos pretos e lisos, tinha os olhos pequenos e puxadinhos, fazendo com que parecesse criança mesmo na idade adulta. O homem ao seu lado, também de olhos puxadinhos, usava paletó e era só um pouco mais alto que a menina. Vinham em busca de sua irmã mais velha, que já estava na idade de trabalhar pra ajudar a mãe. Entraram, não sentaram, não tomaram o cafe que a mãe sempre servia pras visitas, e parecia que nem se quer respiraram dentro da casa, que tinha cheirinho de fogão de lenha. 

    Logo a mãe pediu pra chamar a menina na calçada. "Esta é mais nova um pouco, mas também é boa no serviço. Se vocês prometem que lá vai ter escola, prefiro que ela vá porque é mais esperta." O pânico se instalou naquele coração de criança que não entendia porque a irmã mais velha podia ficar cuidando da mãe enquanto ela tinha que ir cuidar de outras pessoas. A mãe explicou que tinha uma tosse muito forte e que a mais velha sabia melhor cuidar de gente doente. "Você tem que obedecer e estudar, me ouviu? Você tem que ir pra escola." A escola que sempre foi, pelo jeito, não servia mais. "Já passou seu tempo", dizia a professora, que nunca dava aula pra quem tinha mais de doze anos.

    O céu estava claro sem nenhuma nuvem e um vento forte tomava conta do ar no dia em que a mulher de olhos puxadinhos foi buscá-la. Estava feliz por poder colocar a roupinha de domingo, que era mais macia e limpa do que a roupa de todo dia, mas mesmo assim chorou quando viu a mãe limpar as mãos no avental velho pra alisar seu cabelo e dar-lhe um beijo na testa. "Um dia você vem buscar seus irmãos." Sabia que não veria mais a mãe, então cheirou com força o avental. "O melhor cheiro do mundo". Fechou o portãozinho e pisou firme na calçada, mas o tempo não parou pra que ela pudesse ficar ali pra sempre. Foi-se embora no carro de luxo, no qual só andaria aquela vez.

    A casa era maior que a maior casa da cidade da mãe e ficava muito longe. Tinha quartos por todos os lados, uma sala só pra mesa de comer e um outro lugar onde tinham muitos livros. Na chegada, uma mulher baixa e muito magrinha, vestida de avental e pano na cabeça veio buscar a menina, ensinando que ela sempre devia dar a volta na casa e entrar pela porta dos fundos. Passando pelo lado direito, olhou pra dentro da janela e viu o menino sentado, branco como porcelana, com olhos puxadinhos. Teve certeza que ele nunca se sujou na vida. "Esse é o filho do patrão e da patroa, não sabe falar nossa língua, veio de muito longe", disse a governanta magrinha. 

    Na primeira noite, ela não dormiu por que o cheiro de limpeza do seu quarto ardia o nariz. Sentia falta do calor dos irmãos dormindo do lado e do cheiro de cinza que tinha a casa da mãe. Acordou cedo, colocou outra vez a roupinha de domingo e foi encontrar o velho que ia ensiná-la o caminho da escola. "Você tem que obedecer e estudar, me ouviu?", a voz da mãe por todos os lados. 

    Os dias passaram com rotina: acordar, estudar, limpar o chão e a louça, buscar a água. Sempre passava na frente da janela da sala de livros onde o menino de porcelana se escondia quase todo o tempo para desenhar letras estranhas e ler revistas de trás pra frente. De alguma forma a presença da menina na janela fez com que ele não se sentisse tão sozinho e, às vezes, mostrava a língua pra ela, que ria e fazia caretas em retribuição. "Ele não sabe falar nossa língua". Mas então existia outro jeito de falar? 

    Em alguns domingos a menina não tinha trabalho nem escola e passava o dia inteiro do outro lado da janela, mostrando folhas, pedras e até ninhos de passarinho pro menino, que ria e tinha o olhar mais curioso do mundo. Num domingo desses, enquanto a menina mostrava um ninho, o menino trouxe um passarinho de papel cor de céu. Ela encostou os dedos vidro, agradecendo por essa separação transparente que impedia, de alguma forma, que ela danificasse o brinquedo tão lindo. Tinha no olhar toda a ternura do mundo. "Se eu tivesse um passarinho cor de céu só meu, colocava na árvore de amora."

    Os meses se passavam e o menino de porcelana nunca saía. Desenhava letras estranhas e lia livros ao contrário quase o tempo todo, mas, ás vezes, a mãe sentava com ele e faziam pássaros de papel cada vez menores. Quando isso acontecia, a menina não fazia caretas na janela, mas mesmo assim os dois trocavam olhares e sorrisos se a mãe ficava muito concentrada. Um dia, sentava no peitoril da janela do lado de fora, observava o menino dobrando o papeizinhos bem pequenos e fazendo passarinhos minúsculos enquanto algumas lágrimas escorriam pelo rostinho branco de porcelana. Correu na mesa, abriu um livro e pegou uma foto de dentro. Era ele no colo de uma mulher muito bonita e muito nova, que usava roupas coloridas e delicadas, com o rosto pintado de branco e dois palitos no cabelo. A governanta explicou que o menino veio de muito longe e que lá deixou uma mãe verdadeira que não tinha como cuidar dele. Chamavam isso de adoção. Ela, a menina, foi adotada pra ser empregada. Ele, o menino, foi adotado pra ser filho. Eram iguais, só que diferentes.

    Na escola, a professora ensinou que numa terra muito, muito longe existiam cavalos altos com pescoços compridos que comiam as folhas das árvores e se chamavam girafas. Sem ninguém ver, a menina arrancou a foto do cavalo girafa do seu livro, escondeu bem no bolsinho e quando chegou o domingo de folga mostrou pro menino que tinha uma foto de um animal que também era de longe. Queria saber se o menino tinha vindo do mesmo lugar. Ele riu da foto e os dois ficaram imitando cavalos de pescoço comprido, cada um de um lado da janela. No dia seguinte, ela colocou a foto por debaixo da porta da sala de livros, pro menino guardar de lembrança.

    Ela estranhou quando não o viu o menino pela janela durante vários dias. Ouviu a governanta comentar com o velho que dirigia o carro que ele estava doente de uma coisa muito grave. Talvez fosse a tosse forte da mãe.

    Num dia chuva, quando ela vinha da escola, viu um carro grande levar uma caminha de madeira fechada, do tamanho do menino, enquanto a governanta magrinha limpava o rosto no avental. Começou a correr ao redor da casa, buscando a janela da sala de livros e não sabe o que sentiu quando viu a mulher elegante sem força ou expressão no olhar, enxugando lagrimas tão grossas que pareciam nem caber no olhinho tão pequeno. Quando entrou pela cozinha, a governanta tirou do bolso um cavalo de pescoço grande feito de papel. Sem vidro pra protegê-lo, ela o pegou com todo cuidado, pra guardar pra sempre o menino de porcelana e a menina empregada, que adotaram uma girafa de papel.

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